Fraternidade e
inconformismo
Cesar Vanucci
“Morreu um pedaço de mim.”
(Derenir Aquino Rocha, 68 anos de idade, desempregada,
ribeirinha do
rio Paraopeba tomado pela lama)
A dor e comoção
suscitadas por impactante tragédia irmanam as pessoas. Abrem chance, às vezes,
para que se desfaçam idiossincrasias e desavenças pessoais que pareciam
incontornáveis. Contribuem para reduzir, ou até eliminar, tensões de origem
banal acumuladas na convivência rotineira. E, também, desencadeiam ondas
impetuosas de solidariedade, heroicas ações e contagiantes gestos de
generosidade.
Brumadinho repetiu
Mariana no sofrimento inenarrável e na afetividade trazida aos borbotões. Desde
o instante fatídico em que as comportas se abriram para o dilúvio de lama, não
pararam de jorrar demonstrações de fraternidade brotadas do mais genuíno
sentimento popular. O espírito de cidadania marcou também altiva e edificante
posição na agenda dos debates em curso sobre as desnorteantes causas e as
imprevisíveis consequências da catastrófica ocorrência.
As eletrizantes
imagens dos bombeiros, coadjuvados por outros agentes públicos, sobrevoando,
esquadrinhando a pé, com inaudito esforço, as extensas áreas devastadas e
mergulhando, com fervorosa obstinação, na movediça caudal barrenta; as cenas
retratando a atuação de voluntários ardorosamente empenhados nas buscas e na
prestação de serviços de apoio; o trabalho prestimoso das equipes de atendimento
nos diversificados cenários armados para acudir necessidades e emergências de
toda ordem; as redes de orações e de doações organizadas espontaneamente pela
gente do povo; tudo isso faz ecoar, retumbantemente, um brado misericordioso
que enaltece o espírito humano. Não é brado, visto está, que se aliene ao dever
de propagar, alto e bom som, o justo inconformismo que se apossou da sociedade
diante dos fatores causais dessa calamidade, com toque genocida, que poderia
ter sido evitada, mas não foi à conta da ganância, insensibilidade social e
incompetência técnica e gerencial.
O inconformismo é
alimentado ininterruptamente por estarrecedoras revelações. Como as que se
alinham na sequência. Relatório alerta que os metais do lamaçal procedentes da
barragem vinda abaixo tornam a água do rio Paraopeba, que abastece numerosas
cidades, nociva à saúde. Além daquelas que já conseguiram, em circunstâncias extremamente
dramáticas, sepultar seus mortos, outras quase três centenas de famílias
carregam pesado luto por entes queridos desaparecidos. A Agência Nacional de
Mineração (ANA) dispõe de apenas três fiscais para inspecionar a segurança de
435 represas em Minas, 50 delas implantadas a montante, talqualmente as duas
que derramaram lama, sofrimento e dor em Mariana e Brumadinho. Localizada a
menos de dez minutos do centro de Rio Acima, existe uma barreira inativa há
sete anos, pertencente a grupo australiano falido. O empreendimento não dá emprego
a ninguém, não recolhe imposto e deixou antigos empregados sem receber
salários. O dique citado figura na lista dos que constituem ameaça à segurança
pública.
Documento liberado
pelo Ministério Público Federal mostra que, desde 2014, as mineradoras Vale e
Samarco vinham sendo advertidas sobre a gradativa perda de estabilidade dos
rejeitos no Fundão, Mariana. Duzentas e cinco barragens de mineração no país
são consideradas de alto risco. Delas, 140 acham-se implantadas em Minas. A
Vale fica com 32 por cento do total. Parece (mas não é piada): a Agência
Nacional de Mineração elevou de R$ 3.200 para R$ 3.400 o valor máximo das
multas a serem aplicadas a mineradoras. A “atualização” das multas acaba de
sair do forno. O ato foi publicado no “Diário Oficial da União” no dia 31 de
janeiro de... 2019. Omissão (ou que outro nome tenha) do Congresso impediu que
o valor das multas às mineradoras pudesse ser estabelecido em bases sérias.
Medida Provisória encaminhada no governo Temer chegou a prever penalidade de
até 30 milhões. Mas a MP, sabe-se lá por quais insondáveis desígnios, perdeu
prazo de votação. Adveio daí que os efeitos práticos preconizados não puderam
ser colocados em vigência, tá bem?
Porta-voz da Vale ofereceu
explicação de macabro surrealismo a respeito de a sirene de alerta,
estrategicamente plantada, não haver soado, no caso do desabamento da Barragem
de Brumadinho. Não soou pela “simples razão” de que a barragem desabou. Tá
danado... De outra parte, ninguém ainda se sentiu encorajado a esclarecer se
foi por falta de sensibilidade social, ou por mesquinhez econômica, ou
irresponsabilidade gerencial, ou todas essas coisas juntas, que as instalações
de serviços administrativos, refeitório inserido, ficavam implantadas no sopé do
gigantesco e ameaçador arrimo de contenção dos resíduos. A apreensão em
Congonhas acerca dos riscos potenciais da barragem da “Casa de Pedra” levou o
Ministério Público a ordenar que esse complexo seja alvo de imediata vistoria.
Durma-se com um estrondo
desses!
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