Como todas as pessoas normais
Cesar
Vanucci
“Uma pessoa pode não ter maus hábitos e ter piores.”
(Mark
Twain)
Chegou
exultante da cavalgada domingueira. Entrou, esbaforido, pela sala, em direção
do quarto, limitando-se a cumprimentar com leves acenos a cara-metade, filhas e
genros, em lugar de abraçá-los efusivamente como de costume.
Descalçou as botas, amontoou num canto o chapéu e o
restante da indumentária de montaria, ligou o chuveiro e pôs-se a cantarolar, a
plenos pulmões, uma ária da Carmem, de Bizet. A repentina performance como
“tenor de banheiro”, juntada a outros sutis detalhes de conduta captados pelo arguto
poder de observação dos parentes, familiarizados com seus hábitos, que estavam
a aguardá-lo para o tradicional ajantarado semanal, levou a filha mais velha a
comentar com os demais: “- Papai deve ter alguma coisa especial pra contar. Tá
parecendo até que ele andou vendo o periquitinho verde...” O genro mais novo
não entendeu bulhufas a menção ao periquitinho, o que obrigou a cunhada a
explicar-lhe, pacientemente, que a expressão por ela reavivada era de uso comum
em tempos de antigamente, servindo para retratar o enlevo das pessoas diante de
determinadas situações. A observação gerou uma certa expectativa com relação ao
que o chefe da casa teria presumivelmente a relatar. Na sobremesa, a revelação
esperada pipocou. Tirando do bolso, todo afável, semblante risonho, uma folha
digitada frente e verso, ele passou a ler, pausadamente, uma lista de coisas
que soaram, de algum modo, incompreensíveis e que chegaram mesmo a ser
recebidas com certa hilaridade pelos demais. O escrito do cabeçalho era este: "Itens
da consulta aos meus camaradas de sela, bem entendido sela começando com “s” e
não com “c”.
Na
sequência, numerados de 1 a 8, os
seguintes registros: “1. Besuntar com fartos respingos de creme dental, por
ocasião da higiene bucal, o pijama, a camisa, a gravata, a cueca e até a
sobrancelha; 2. Esquecer eventualmente de levantar a parte com orifício
circular do tampo do vaso, nalgum momento de desafogo urinário; 3. Ir parar,
algum dia, nalgum posto de atendimento médico de urgência pela desastrada
circunstância de não haver adotado as cautelas de estilo, deixando de calcular
na justa medida a trajetória cortante do zíper, ao fechar a braguilha da calça;
4. Abrir a geladeira, alta madrugada, colocar dentro um copo, enchê-lo de
leite, sem conseguir evitar, todavia, por alguma razão inexplicável, que parte
do líquido escoe pelas prateleiras do refrigerador; 5. Na direção do carro, só
dar-se conta da necessidade de afivelar o cinto de segurança no preciso
instante, no meio de enervante congestionamento de tráfego, da ameaçadora
aproximação de um guarda de trânsito; 6. Esquecer-se, vez em sempre, de datas
comemorativas relevantes, do ponto de vista da convivência familiar, como
aniversários da esposa e filhos, dia das mães, por aí; 7. Cortar-se,
habitualmente, pela manhã, com a lâmina de barbear; 8. Erguer-se da cama, no
breu da noite, luzes todas apagadas, percorrendo pé ante pé, bem devagarzinho
mesmo, mode não incomodar ninguém, percurso invisível até a sala de televisão e
dar uma baita e inesperada topada de canela e dedão com a quina de um móvel
fora do lugar, botando pra fora um uivo de dor, cantando a pedra noventa e
acordando e colocando em sobressalto toda a patota familiar.
Finda a
leitura, olhar triunfante, fixado nos rostos entre zombeteiros e curiosos do
pequeno público doméstico, balançando o papel no ar, desabafou: - Vocês
implicam muito comigo, chamando-me de desajeitado, de mister Bean, de Inspetor
Clouseau, pra dizer o mínimo, por conta de inofensivas trapalhadas que apronto,
e que estão aqui da lista. Pois bem, resolvi submeter esses itens aos
companheiros de cavalgada. Todos, sem uma unicazinha exceção, são réus
confessos das mesmíssimas aprontações. Querem saber de uma verdade: quem age
costumeiramente assim são pessoas absolutamente normais, tá bem? Há aprontações bem piores.
Nada
mais disse nem lhe foi perguntado.
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