Maquiagem preconceituosa
Cesar Vanucci
“Nunca soube que Nilo
Peçanha era negro!”
(Senador José Serra, governador de São
Paulo à época da exposição dos
painéis de rua retratando personagens
negros de realce na vida brasileira)
Aludimos aqui, ainda recentemente, ao
vergonhoso e usual procedimento adotado em certos setores, com a indesculpável
complacência de alguns órgãos representativos da atividade intelectual, de se
adulterar publicamente a condição étnica de notáveis personagens negros da
cultura brasileira. Essa persistente e deploravelmente enganosa disposição de
“maquiamento embranquecedor” – chamemos assim – de expoentes da inteligência
dotados de cútis negra – “negra como a noite, negra como as profundezas
d’África”, retornando à fala do poeta (negro) Langston
Hughes – constitui manifestação de
preconceito racial indisfarçável, deslavado e indesculpável. Algo em estridente
dissonância com os preceitos democráticos e humanísticos que recobrem de
dignidade a caminhada do ser humano.
Como então sublinhamos no
comentário de dias atrás, figuras da expressão de um Machado de Assis, de Lima
Barreto, de Cruz e Souza, citando apenas alguns nomes estelares no cenário
cultural de todos os tempos, são habitualmente retratadas, em imagens
caprichosamente retocadas, como “gente branca”. As coisas assim processadas
derivam da estrábica concepção de que essa deformação de imagem serviria para
“enriquecer-lhes” as biografias, quando, na realidade, muito pelo contrário,
serve apenas para aviltar-lhes a memória.
Retomando hoje o desconcertante
tema, anotamos outros nomes mais à lista de personalidades negras eminentes que
se viram envolvidos em registros históricos inconsistentes no que diz respeito
à sua autêntica origem racial. Vem a calhar, a propósito, informação de que em
São Paulo, no final da década passada, em promoção das Secretarias de Cultura
do Estado e da Capital bandeirante, ao ensejo da celebração do “Dia da
Consciência Negra”, painéis medindo 5 metros de altura, projetando retratos de
afrodescendentes ilustres, foram afixados nas fachadas de inúmeros prédios
públicos e privados. Entre eles, o “Theatro Municipal”. A iniciativa
representou, segundo seus idealizadores, contribuição no sentido de resgatar a
história de cidadãos negros proeminentes de certa forma “embranquecidos” em
ações de flagrante impostura social.
Encarregado, naquela
ocasião, da pesquisa que compôs 100 nomes de brasileiros negros com
participação valiosa no desenvolvimento do país, o antropólogo Dagoberto José
Fonseca, professor da Universidade Estadual de SP, explicou que existe, na
comunidade brasileira, uma certa inclinação, sem dúvida censurável, de promover
“uma espécie de branqueamento da cultura negra”. A pesquisa proporcionou
revelações que deixaram surpreendidos não poucos segmentos comunitários. Muita
gente, por exemplo, ignorava – e até hoje isso continua acontecendo – que a
notável compositora Chiquinha Gonzaga, autora, entre outras belas canções, da
célebre marchinha “Ó, abre alas!”, era negra. Num seriado televisivo que
alcançou recordes de audiência, o papel de Chiquinha, que também se notabilizou
pela corajosa postura em defesa das mulheres contra a opressão machista
dominante em seu tempo, foi vivido por Regina Duarte, atriz branca de grande
prestígio popular a ponto de se tornar conhecida como “namoradinha do Brasil”.
Da lista em questão faz parte também alguém que, vivendo entre 1867 e 1924,
militante político de destaque, chegou a ocupar a própria Presidência da
República, Nilo Peçanha.
Mais sugestivos exemplos: é
do desconhecimento público que o fundador da Escola Politécnica de São Paulo, o
engenheiro de renome nacional Teodoro Sampaio, era um afrodescendente. E,
ainda, que uma mulher negra, Virginia Leone Bicudo, fundou a Sociedade
Brasileira de Psicanálise.
A divulgação dos 20
personagens negros, de presença cintilante no processo de construção do
desenvolvimento cultural, escolhidos para figurar nos painéis mostrados nas
ruas da maior cidade brasileira, provocou, fácil deduzir, reações de surpresa.
Surpresas derivadas, obviamente, dos efeitos deixados no espírito popular pelo
contexto social preconceituoso dos fatos acima narrados.
Eis a relação dos 20
patrícios retratados nos painéis: Clara Nunes, cantora; Carolina de Jesus,
escritora; Virginia Leone Bicudo, psicanalista; Gonçalves Dias, poeta; Mário de
Andrade, escritor; Milton Santos, geógrafo; Cruz e Souza, poeta; Carlos Gomes,
compositor; Lima Barreto, escritor; Chiquinha Gonzaga, compositora; Luiz Gama,
advogado; José do Patrocínio, jornalista; Leônidas da Silva, craque de futebol;
Juliano Moreira, médico; André Rebouças, engenheiro; Teodoro Sampaio,
engenheiro; Machado de Assis, escritor; Castro Alves, poeta; Geraldo Filme,
músico; Nilo Peçanha, político.
Nenhum comentário:
Postar um comentário