Sempre em nome de Deus
Cesar
Vanucci
“Que pensará Deus de nós?”
(Raul de Leoni, poeta)
Tem disso. Muito
disso por aí. Tem gente que, apoderada de delirantes certezas, imagina-se mais
cristã que Jesus Cristo. Mais católica que o Papa. Mais conhecedora das
propostas reformistas protestantes que Martinho Lutero.
Tem muito disso por
aí. Pessoas que se julgam, com mórbido fervor, em condições de explicar melhor
os conceitos budistas que o Dalai Lama. Interpretar para islamitas, com
exatidão que poderia haver faltado ao profeta Maomé, os versículos do Alcorão.
Passar aos adeptos, de forma mais convincente que os integrantes do colégio
teológico de rabinos de Telavive, os preceitos contidos na Torá. Ou fazer
leitura mais precisa das revelações expressas na obra espiritista de Alan
Kardec que o próprio autor.
Tem muito disso
espalhado por aí. O radicalismo fundamentalista, uma contrafação incendiária do
autêntico sentimento religioso, vem sendo responsável, no curso da caminhada
humana, por barbaridades sem conta. Coloca-se atrás de carnificinas bélicas,
expurgos étnicos, raivosas manifestações racistas, desavenças aterrorizantes na
relação comunitária. Estribando-se em dogmatismo rançoso, propaga ensinamentos
doutrinários desatinados, na base do “crê ou morre”. Respalda atrocidades, em
nome de Deus. Justifica violações abomináveis. Repele a prática da concórdia e
da tolerância contida nas percepções humanísticas e ecumênicas. Violenta os direitos
fundamentais e promove agressões constantes à livre expressão das ideias.
Ampara ações virulentas do terrorismo sem causa.
Um mergulho nas águas
revoltas da história traz à tona infindáveis registros de situações
apavorantes, provocadas pelo extremismo colérico dos integristas religiosos das
mais diferenciadas colorações. As cruzadas, a Inquisição, os conflitos banhados
de sangue entre católicos e protestantes em dolorosos períodos da Europa
medieval, os cruéis processos de colonização cultural e econômica levados a
cabo, séculos atrás, nas regiões das chamadas descobertas européias, são, entre
outros vestígios contundentes, lembranças de ações fundamentalistas impiedosas.
A rebelde Irlanda,
componente da comunidade britânica das nações, foi palco, até poucos anos atrás,
de confronto tribal pavoroso. Os litigantes, dizendo-se cristãos, sentiam-se
inteiramente à vontade, agarrados a mórbidas convicções, para promover o
lançamento de petardos explosivos nas casas e escolas dos adversários. Tudo em
nome de Deus. O mundo acostumou-se a ver o dilacerado e feudal Afeganistão como
cenário de conflitos perpétuos e virulências terroristas cotidianas, tornadas
tenebroso produto de exportação. Nesse pedaço do mundo, parcialmente dominado
pelas ferozes milícias talibãs, o fanatismo desvairado reduziu a estilhaços o
maior conjunto existente no planeta de imagens de Buda esculpidas na rocha.
O desatino
fundamentalista revela-se disposto, também, numa outra escala, a destruir
documentos e símbolos representativos de culturas religiosas alvo de sua
perversa hostilidade. O leitor haverá de se recordar de uma cena estarrecedora
produzida por tresloucado pastor, algum tempo atrás, diante das câmeras de
televisão. Destilando ódio e vociferando asneiras, o dito cujo espatifou uma
imagem de Nossa Senhora da Aparecida, padroeira do Brasil. Recebo de um leitor
texto atribuído a um desses cidadãos que se auto-intitulam pregoeiros da
“verdadeira verdade religiosa”. Trata-se de conclamação, em tom de “guerra
santa”, para que seus seguidores dêem sumiço a livros e outros símbolos de
crenças religiosas consideradas heréticas, que lhes caiam inadvertidamente às
mãos. Na peroração intolerante chega-se até mesmo a classificar a ioga como
manifestação elucubrada em redutos dominados pelo maligno.
Também recentemente,
eu próprio vi e ouvi, com estes olhos e ouvidos que a terra um dia vai comer -
só que, dependendo de minha exclusiva vontade, daqui muitos anos ainda – um
fanático de carteirinha, membro de outro agrupamento do multifacetado
integrismo religioso, a trovejar na telinha arrepiantes conselhos. Olhos
latejantes, empapado de suor, gesticulante, voz tonitruante, o homem propunha,
aos prosélitos, ditames de vida reputados de pios, imaculados e castos. Mais ou
menos nesta linha: às irmãs de fé, para que se acautelassem, não permitindo,
jeito maneira, aos maridos cometessem o “pecado” de cerrar as portas dos
escritórios quando do ingresso, nesses locais de trabalho, de pessoas do sexo
oposto; aos irmãos de fé, para que agissem que nem os escoteiros, permanecendo
alertas e vigilantes, ao lado das respectivas consortes, quando ocorresse a
“ameaça” da presença de pessoa do sexo masculino em seus lares, convocada para
prestação de serviços profissionais, ou a título de mera visita social. O
prudente aconselhamento se embasava na “louvável preocupação” de não deixar
marido e mulher expostos, salvaguardando a sacralidade matrimonial, a tentações
que pudessem brotar, eventualmente, de uma coisa tão pecaminosa, como seja a
espúria aproximação, para inocente papear, de um homem e de uma mulher.
Valha-nos Nossa
Senhora da Abadia d’Água Suja!
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