Histórias
de Marildinha
Cesar Vanucci
“Acontece, às vezes, de parte ou toda
resposta já virem embutidas na pergunta.”
(Domingos
Justino Pinto, educador)
A
adolescente Marildinha – já contei proezas dela aqui, noutra ocasião –
atravessa aquele estágio invejável da vida por alguém definido como primavera
da beleza. Mesmo havendo quem a chame de “aborrecente Marildinha”, ela esbanja
juvenil graciosidade no jeito e trejeitos. Dona de inquiridores olhos esmeraldinos,
realçados pela tez amulatada, essa “garota espoleta” (expressão de uso corrente
em idos tempos) demonstra no comportamento social voraz curiosidade sobre as
coisas que rolam no complicado mundo dos adultos.
Marildinha
ganhou, por essa conta, no São Benedito, onde mora, fama de “perguntadeira
contumaz” nas rodas frequentadas, sobretudo escolares. Na sala de aula, suas
perguntas indiscretas e observações desconcertantes costumam deixar embaraçados
instrutores já calejados no batente do magistério.
Uma
professora, sem esconder admiração pela aluna, garante que Marildinha é
diferenciada. Caminha em ritmo acelerado nas aquisições dos conhecimentos que
conduzem à conscientização dos deveres e direitos cidadãos. Vaticina, com
convicção, que o futuro acena para ela, infalivelmente, posição de liderança
comunitária. “Marildinha ainda vai dar muito o que falar”, pontua.
Essa
mesma professora tomou o cuidado de coletar “amostras” sugestivas da
persistência da aluna em disparar indagações intrigantes a propósito de
situações e problemas do cotidiano. As perguntas e questões por ela pautadas traduzem,
naturalmente, dúvidas nascidas da inquietude intelectual da garota. – “Cigarro
faz mal à saúde da gente?” Pergunta Marildinha à mestra. – “Claro que faz” – a
resposta ouvida. Marildinha retorna: – “Faz mais mal que maconha?” – “Quase tanto
quanto”, esclarece a professora, aduzindo: “Em cada maço de cigarros está
anotada uma advertência das autoridades da Saúde sobre os danos provocados pelo
fumo. O fumante pode contrair uma porção de doenças: câncer, trombose,
gangrena, impotência, enfisema, infarto, bronquite, angina, tá tudo escrito lá”.
A pergunta da volta põe fim ao bate-papo: – “Uai! Mas, se é mesmo assim, se o
cigarro é essa droga toda, por que deixam ele ser vendido, então, em tudo
quanto é biboca, hein? Muito esquisito, tudo isso!”
Na
drogaria do bairro, comprando simples barras de cereais “da promoção”, e no
ponto de venda de cupom para estacionamento rotativo, a opinião que deixa cair
é na base da bronca: - “Essa coisa de exigir CPF do freguês é estranha pacas. O
que tá por trás disso?”
Não
deixa por menos, quando na portaria do parque público um funcionário solicita
de seus familiares a apresentação dos CPFs mode que poder liberar o acesso de
todos: - “Aqui, também? Mas será o Benedito?” O funcionário, sem entender
bulhufas, retruca: “Quem é o Benedito?” Marildinha retoma a palavra: - “Xii,
deixa prá lá, esquece... Ocê tem culpa alguma por essa nóia burocrática...”
O
tio materno e padrinho de batismo de Marildinha, Ascânio, de apelido Bulico,
funcionário público aposentado, dono de mercearia, é uma espécie de conselheiro
mor da família. Suas opiniões pesam bastante nas decisões da parentada.
Marildinha tem por ele afeição, pode-se dizer filial. Absorve razoavelmente o
que ele fala e recomenda. Mas, indoutrodia, ficou um tanto encafifada com uma
informação que ele passou sobre o caso Marielle. A vereadora carioca não teria
sido alvo de atentado coisa nenhuma. Ela e o assessor morreram num acidente
automobilístico. Excesso de velocidade. O auê criado em torno da morte a tiros,
a participação de milicianos, as versões “fantasiosas” da mídia, tudo não passa
de armação pra confundir as pessoas. Foi com muito custo que Marildinha conteve
o impulso de contradizer a estapafúrdia tese.
Todavia,
neste lance mais recente da avalancha de óleo, vinda do mar, que vem
emporcalhando as praias, prejudicando centenas de municípios nordestinos, ela
achou chegada a hora de expressar discordância frontal às explicações falaciosas
do padrinho. Oportuno esclarecer, a esta altura, que o tempo de folga de Bulico
- praticamente o dia todo - é diligentemente reservado à leitura e repasses de
postagens das redes sociais. Sem o mais leve pudor ético e senso crítico, repetindo
mecanicamente aquilo que é feito por um mundão de indivíduos desocupados com
estreita visão das coisas, o tio costuma empurrar levianamente para os outros
as mais escalafobéticas informações.
Fitando
firme Bulico nos olhos, Marildinha soltou o verbo: - “Escuta, dindo, eu tava
crente, até hoje, que era verdade o que o senhor andou esparramando. O óleo tinha
sido jogado por ambientalistas de araque e mais o pessoal do Lula, os filhos
dele donos do Friboi, de frotas de aviões e navios e de várias emissoras de TV.
Mas, gorinha mesmo, deu na televisão que o culpado de tudo é um navio grego...”
A
garota “espoleta” fez uma pausa, moveu o sobrecenho em sinal de dúvida, voltando
à carga: - “Mas pera lá! Essa história também não tá bem contada. Um único
navio será capaz de aprontar lambança deste tamanhão?”
Marildinha
perguntadeira é fogo na jaca!
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