Luta em
vão contra tolices
Cesar Vanucci
"Com a tolice os próprios deuses lutam em vão."
(Friedrich Schiller, filósofo e historiador)
Integrante do reduzido, posto que leal, culto e assíduo
leitorado destes mal datilografados escritos abastece-nos de informação que
serve, alentadoramente, para enriquecer as considerações que, de quando em
quando, trazemos a este acolhedor espaço com o propósito de reagir às agressões
sofridas pela cultura brasileira.
Segundo ele, os restaurantes que mais faturam na
praça, vale dizer, que mais fregueses atraem, são os de denominação – às vezes,
tão saborosa quanto os pratos do cardápio – com som, jeito e cara de Brasil. O
leitor explica ainda que na avaliação pessoal procedida deixou de levar em
conta, como estabelecimentos classificados na "lista estrangeiros",
as casas típicas cujos nomes fantasia se mostrem vinculados, por óbvios
motivos, à natureza essencial do negócio. E tira animadora conclusão para quem
se disponha a defender, com espírito cívico, o apreço na lida cotidiana ao
idioma do país: o povo sabe assumir, instintivamente, a proteção dos valores
culturais da nação. Imaginamos seja mesmo assim que as coisas rolem nos redutos
populares. E nos pomos a pensar quão proveitosa poderia vir a ser em revelações
uma pesquisa aprofundada das preferências comunitárias, nessa linha de
averiguações seguida no caso reportado dos restaurantes.
As desfigurações e o achincalhe linguísticos, bem
como outras habituais modalidades de atentado cultural, têm origem no pauperismo
intelectual subjacente a ambientes sofisticados onde a falsa erudição reina e
onde muitos se entregam, embriagadoramente, ao jogo fantasioso de pertencer às
chamadas "elites emergentes". Nesse território de pedantismo elevado
ao cubo é de bom tom o emprego de estrangeirismos no papo trivial. Não se trata
aí do uso pertinente de vocábulos ainda não traduzidos, indispensáveis ao
entendimento de um processo tecnológico relevante. Nem de citações,
perfeitamente compreensíveis, em idioma alheio, capazes de definirem com melhor
precisão uma circunstância típica ligada a realidade cultural de outros
lugares. Nada disso. O que merece condenação é o emprego de estrangeirismos
forçados, roçando o desrespeito. A expressão decorada fica engatilhada no canto
da língua ou armazenada na gaveta da memória, aguardando hora e vez de ser
lançada, com pernosticismo, em manifestações orais e escritas.
Correspondências, convites, discursos, entrevistas, painéis de rua, folhetos e
volantes contendo ofertas de ocasião: a situação é de puro surrealismo.
Concorre para a poluição sonora e visual, sendo vivenciada na indigência cívica
e intelectual de uns e outros.
Acode-nos à lembrança, neste preciso instante, um
fato assaz divertido. Uma comerciante da praça recebeu carta de fornecedor
salpicada, como é de praxe em certos ambientes, de frescurinhas vocabulares. Do
impresso, bem cuidado do ponto de vista gráfico, cores harmoniosamente distribuídas,
caracteres sugestivos, o escambau, constou proposta à destinatária para
cooperar com o missivista no sentido de que, juntos, pudessem "alcançar
nossa gestalt". A dama agraciada com a desconcertante proposta,
pessoa temente a Deus, desafeiçoada à terminologia “alienígena” solta por aí,
só se tranquilizou mesmo quando a filha, estudante de Psicologia, rindo à
bandeiras despregadas, explicou o significado da desconcertante e desconhecida
expressão. Foi quando, então, ficou sabendo que gestalt, palavra alemã,
sem tradução no vernáculo, de conteúdo substancioso, identifica uma técnica
utilizada em Psicologia para transmitir ideia aproximada de totalidade,
abrangência, por aí. A comerciante inteirou-se, também, que o termo trafega com
crescente desembaraço pelos descaminhos das incontinências verbais. É adotado,
com entusiasmo iconoclasta, para o uso impróprio costumeiro, pela turma que
considera o máximo, em matéria de saber, a capacidade para introduzir de
enfiada num diálogo de cinco minutos as palavras "book",
"inside", "feeling", "feedback" e outras do
gênero. Ou que considere uma suprema bem-aventurança receber em casa, com o
nome grafado de próprio punho pelo anfitrião, um "emergente"
qualquer, honroso convite para um "brunch" ou "happy hour"...
Carradas de razão assistia a Schiller, quando
asseverava que "com a tolice os próprios deuses lutam em vão". Ou ao
poeta Coelho Neto, quando proclamava que “Civismo é (...) zelar pela pureza do
idioma e dos costumes herdados.”
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