sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


Humanidade, uma só raça

Cesar Vanucci

"Afinal de contas, só existe uma raça: a humanidade."
(George Moore)

Dizíamos no comentário passado que o recado de Zumbi dos Palmares, cuja história é relembrada na “Semana da Consciência Negra”, convida a sociedade brasileira a uma séria reflexão. O que remete, como também já falado, à imperiosa necessidade de se procurar conhecer, nas exatas proporções, os problemas com características às vezes tormentosas enfrentados nestes nossos imensos pagos por patrícios de origem afro.

O escritor estadunidense Richard Wright sustenta não existir propriamente um problema negro, mas apenas um problema branco. Vamos um bocadinho além. Não existe problema negro, nem branco, nem judaico, nem indígena, nada disso. O que existe é um baita problema do ser humano. Que terá de ser resolvido por brancos e negros, por todo mundo, afinal, já que se trata de um problema de todos. A realidade brasileira deve ser exposta transparentemente, conscientemente, mesmo comportando registros amargos e machucaduras de nada fácil cicatrização. Há que se promover, com boa fé, com enfoque humanístico e sensibilidade social, empenhado esforço na busca das soluções corretas.para uma convivência comunitária fraternal. Habituamo-nos, por vício comportamental, na análise do candente tema, a aceitar e propagar, como verdade dogmática, conceitos elaborados em forma de repetitivos clichês mentais. Talvez como forma inconsciente de aliviar culpas e de pulverizar as cotas de responsabilidade de indivíduos e de grupos.

Questionamentos relevantes emergem de uma avaliação que não se contenta mais com abordagens periféricas do tema. Será que neste nosso Brasil lindo, abençoado por Deus, “pátria do Evangelho”, como proclamam respeitáveis correntes espiritualistas, não existe mesmo discriminação? Os negros, por estas bandas, desfrutam mesmo de oportunidades iguais às dos brancos no mundo do trabalho, no ambiente universitário, no acesso aos benefícios sociais? Será que todos estamos inteiramente à vontade para responder afirmativamente, com convicção, contemplando com visão crítica o cenário social e profissional, a essas e outras inúmeras desassossegantes indagações? Vai surgir fatalmente alguém, apoderado de reta intenção, para explicar que os incômodos sinais de preconceito são, por aqui, menos aflitivos, talvez, que os detectados em outros países. Mas, mesmo que assim seja, a observação não elimina a intolerância implícita ou explícita que caracteriza anômalos e perversos procedimentos volta e meia detectados.

Recorro a uma historieta, pinçada numa lista estridente e numerosa, que tenho na conta de emblemática. Anos atrás, o principal clube recreativo de importante município do interior convidou, para exibição e homenagem, o time de basquete do Palmeiras, que acabara de conquistar o título sul-americano. A estrela do time, cestinha da competição, era um negro conhecido pelo nome de guerra de Rosa Branco. Recepção calorosa foi prestada aos visitantes. Na quadra, tudo correu nos conformes. Torcida em clima de delírio, música, faixas, ovações. Na hora do baile de gala, uma decisão apavorante. Todos os atletas estavam convidados, menos dois. O astro Rosa Branco, por não sê-lo, e um outro colega, pela mesma razão. Quer dizer, por razão nenhuma. O assunto ganhou polêmica. Tomei parte ativa nela. Botei pra fora santo inconformismo, como cidadão e jornalista, diante do insano procedimento. Solidarizei-me de pronto, publicamente, com as vítimas do abjeto ato preconceituoso e constatei, um tanto desconcertado, que elas, as próprias vítimas, se sentiram, de certo modo, surpreendidas com o meu gesto. Fato revelador de um processo alienante de conformismo e resignação. Os dirigentes e atletas brancos do Palmeiras engoliram caladinhos a desfeita. Alguns dias depois, saindo de uma entrevista radiofônica, fui procurado pelo diretor de um outro clube do lugar. Trouxe-me alentadora palavra de apoio, para na sequência, sem se impressionar com meu estado de perplexidade, perpetrar esta escandalosa revelação:
- Sabe, o pessoal do clube rival agiu mal. Devia fazer como nós fazemos. As pessoas de cor não são barradas na porta. O que não podem é sair dançando pelo salão...

Revendo o incrível episódio, ponho-me a matutar cá com os meus botões se a nossa aventura cotidiana não anda salpicada de cenas e gestos aparentemente inofensivos e amenos que escondem condutas parecidas com as dos dirigentes dos clubes?  E que estão, chocante e obviamente, em desarmonia com valores essenciais da cultura civilizatória.

Com toda certeza, é preciso ouvir um pouco mais o recado de Zumbi. E de Luther King. E de Nelson Mandela. De todos os magníficos personagens, daqui de dentro e lá de fora, que batalham incansavelmente contra a discriminação racial, apontando o racismo como blasfemo atentado à dignidade do ser humano.

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