O
racismo se vale, também, de sutilezas
Cesar Vanucci
“Sou negro, como é negra
a noite. Sou negro como as profundezas d’África”.
(Langston Hughes, poeta negro
estadunidense)
O preconceito racial sorrateiro, camuflado pela sutileza de um gesto
aparentemente prestativo e cortês, como dói! No restaurante de luxo, retornando
à mesa depois de servir-se das iguarias de um opulento cardápio, Almerinda,
loura de olhos azuis, socióloga de profissão, é abordada pelo vizinho da mesa
ao lado. Em tom cúmplice ele denuncia: - “Tome cuidado com aquele crioulo ali.
Ele “tava” de olho na sua bolsa. Como percebeu que eu acompanhava seus
movimentos, deu uma disfarçada e afastou-se. Não sei como um lugar refinado
como este permite a entrada de gente dessa laia”. Saindo do sério, Almerinda
sapecou poucas e boas pra cima do “solícito” denunciante: - “Acontece que
aquele crioulo suspeito, professor, é simplesmente meu marido. Pai dos meus
dois filhos, aqui ao lado.”
Adiante. Em
aeroportos dos Estados Unidos e europeus os guardas alfandegários costumam
estabelecer pelo olhar, carregado de desconfiança, uma triagem prévia dos
passageiros desembarcados. As pessoas claras desfrutam do privilégio de
tratamento especial, com a garantia de circulação rápida pelos guichês, direito
a mesuras e acenos cordiais. Quando chega a vez do grupo dos amorenados, das
pessoas de tez escura, ou de aparência oriental, desvanece-se o sorriso amável,
substituído por polidez glacial e trique-triques que fazem a glória da rotina
burocrática. As fisionomias passam a lembrar, então, os semblantes crispados
dos costumeiramente mal-humorados guardas russos de fronteira escalados para
conferirem passaportes, revistar passageiros e bagagens.
Desloquemos, na
sequência, o holofote das atenções para outro cenário. Cá está, na tevê
americana, um soberbo trabalho de investigação jornalística. Interessados em
apurar tendências no comportamento das ruas, experimentados repórteres
postam-se numa movimentadíssima avenida de Nova Iorque. Na calçada,
acompanhados em todos seus movimentos pelas câmeras, um negro e um branco
disputam, aos brados, fazendo uso de toda a gesticulação a que têm direito, os
olhares dos motoristas que trafegam pela via entupida de carros. A totalidade
dos motoristas, entre eles alguns negros, faz questão de ignorar por completo a
ruidosa encenação do preto, posicionado alguns metros à frente do branco.
Rendem-se, incondicionalmente, à opção de atender ao passageiro de pele clara.
Os repórteres não se
dão por satisfeitos e resolvem apelar para novo esquema. Trocam o branco e o
negro de posições. Os carros de praça (como é que fomos deixar substituir
expressão tão saborosa pela feiosa denominação de táxi?) da leva seguinte, não
vacilam: atendem, pressurosos, todos eles, à chamada do cidadão claro. Fica
evidenciado, de forma irrespondível, não se tratar, positivamente, de uma simples
questão de melhor visibilidade ambiente, à média distância. Na sequência, os
participantes do teste são oficialmente apresentados. O negro é ator famoso,
ganhador de “Oscar”. O branco, um cara que já passou por condenação judicial.
Já a historieta a seguir
não foi vivida em Berlim, Viena, ou Pretória. Nem em Nova Iorque. É coisa nossa
mesmo. Em encantador e importante burgo do interior, um cidadão em ascensão
política recebe a visita de dirigentes e benfeitores do clube de maior projeção
na vida citadina. Os visitantes explicam logo a que vêm. Querem fazer do
anfitrião presidente do clube. Por causa de seus méritos pessoais, sua visão
social e coisa e loisa. Desvanecido, ele aceita a indicação, anunciando planos,
bem recebidos pelos demais. Pede permissão para um registro a mais: gostaria de
franquear o acesso ao quadro de sócios, em sua gestão, de pessoas da comunidade
negra. O que acontece na continuidade é espantoso. Depois eu conto, como
costumava dizer, em idos tempos, o colunista Jacinto de Thormes. Ou seria o
igualmente festejado Ibrahim Sued?
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