sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


O racismo se vale, também, de sutilezas

Cesar Vanucci

“Sou negro, como é negra a noite. Sou negro como as profundezas d’África”.
(Langston Hughes, poeta negro estadunidense)

O preconceito racial sorrateiro, camuflado pela sutileza de um gesto aparentemente prestativo e cortês, como dói! No restaurante de luxo, retornando à mesa depois de servir-se das iguarias de um opulento cardápio, Almerinda, loura de olhos azuis, socióloga de profissão, é abordada pelo vizinho da mesa ao lado. Em tom cúmplice ele denuncia: - “Tome cuidado com aquele crioulo ali. Ele “tava” de olho na sua bolsa. Como percebeu que eu acompanhava seus movimentos, deu uma disfarçada e afastou-se. Não sei como um lugar refinado como este permite a entrada de gente dessa laia”. Saindo do sério, Almerinda sapecou poucas e boas pra cima do “solícito” denunciante: - “Acontece que aquele crioulo suspeito, professor, é simplesmente meu marido. Pai dos meus dois filhos, aqui ao lado.”

Adiante. Em aeroportos dos Estados Unidos e europeus os guardas alfandegários costumam estabelecer pelo olhar, carregado de desconfiança, uma triagem prévia dos passageiros desembarcados. As pessoas claras desfrutam do privilégio de tratamento especial, com a garantia de circulação rápida pelos guichês, direito a mesuras e acenos cordiais. Quando chega a vez do grupo dos amorenados, das pessoas de tez escura, ou de aparência oriental, desvanece-se o sorriso amável, substituído por polidez glacial e trique-triques que fazem a glória da rotina burocrática. As fisionomias passam a lembrar, então, os semblantes crispados dos costumeiramente mal-humorados guardas russos de fronteira escalados para conferirem passaportes, revistar passageiros e bagagens.

Desloquemos, na sequência, o holofote das atenções para outro cenário. Cá está, na tevê americana, um soberbo trabalho de investigação jornalística. Interessados em apurar tendências no comportamento das ruas, experimentados repórteres postam-se numa movimentadíssima avenida de Nova Iorque. Na calçada, acompanhados em todos seus movimentos pelas câmeras, um negro e um branco disputam, aos brados, fazendo uso de toda a gesticulação a que têm direito, os olhares dos motoristas que trafegam pela via entupida de carros. A totalidade dos motoristas, entre eles alguns negros, faz questão de ignorar por completo a ruidosa encenação do preto, posicionado alguns metros à frente do branco. Rendem-se, incondicionalmente, à opção de atender ao passageiro de pele clara.

Os repórteres não se dão por satisfeitos e resolvem apelar para novo esquema. Trocam o branco e o negro de posições. Os carros de praça (como é que fomos deixar substituir expressão tão saborosa pela feiosa denominação de táxi?) da leva seguinte, não vacilam: atendem, pressurosos, todos eles, à chamada do cidadão claro. Fica evidenciado, de forma irrespondível, não se tratar, positivamente, de uma simples questão de melhor visibilidade ambiente, à média distância. Na sequência, os participantes do teste são oficialmente apresentados. O negro é ator famoso, ganhador de “Oscar”. O branco, um cara que já passou por condenação judicial.

Já a historieta a seguir não foi vivida em Berlim, Viena, ou Pretória. Nem em Nova Iorque. É coisa nossa mesmo. Em encantador e importante burgo do interior, um cidadão em ascensão política recebe a visita de dirigentes e benfeitores do clube de maior projeção na vida citadina. Os visitantes explicam logo a que vêm. Querem fazer do anfitrião presidente do clube. Por causa de seus méritos pessoais, sua visão social e coisa e loisa. Desvanecido, ele aceita a indicação, anunciando planos, bem recebidos pelos demais. Pede permissão para um registro a mais: gostaria de franquear o acesso ao quadro de sócios, em sua gestão, de pessoas da comunidade negra. O que acontece na continuidade é espantoso. Depois eu conto, como costumava dizer, em idos tempos, o colunista Jacinto de Thormes. Ou seria o igualmente festejado Ibrahim Sued?

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