sexta-feira, 20 de março de 2020


Uma prioridade humana

Cesar Vanucci

“As mulheres são seres humanos exatamente como os homens – iguais na capacidade de julgar e de cometer erros, se lhes derdes a mesma experiência do mundo e os mesmos contatos com este."
(Lin Yutang – 1895-1976)

Numa terna cena de infância, extraída do baú das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira líder feminista que fiquei conhecendo. Era uma moça de seus 30 anos, dona de semblante extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava obstinação pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela reforçava as palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já adulto, alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de prosa. Até hoje carrego a dúvida que um bom papo poderia certamente ter desfeito. Teve ela, a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor dos gestos e ações que assumiu?
Todas as tardes, eu a avistava descendo a ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a garotada tocava suas peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um que outro palavrão, punido às vezes com chinelada. A sensação era de que Verlaine encontrara naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os versos: “Quando ela anda, eu diria que ela dança”. Pontualidade parecia atributo todo seu. Havia quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que as janelas das redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga mal contida. Murmurações e olhares recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória por detrás das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do falso puritanismo entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco mistério que aguçava demais da conta a cabeça da gente.
Por que as coisas corriam daquela maneira?
O que a nossa heroína andava aprontando a fim de provocar tanto transtorno?
Preparem-se os eventuais leitores destas mal datilografadas para um baita impacto. Nossa intrigante personagem, apenas e simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela aprazível cidade do interior, na cara e na valentia, fumar em público. Ousou mais – “imaginem só o descaramento!” -: foi também a primeira mulher a andar de calça comprida pelas ruas, num desafio aberto aos padrões predominantes em matéria de "veste recatada".

Tais lembranças, de simbólico surrealismo, arrancando dos mais jovens, com toda certeza, estardalhantes risadas, chegam a propósito do transcurso, dias atrás, do "Dia Internacional da Mulher".

Ponho-me a imaginar que comemorações desse gênero, cada vez mais consistentes em afirmações de cidadania, sejam capazes de abrir efetivas condições para a quebra de novos elos na gigantesca engrenagem que aprisiona a mulher, em extensas áreas geográficas, sociais, profissionais e culturais, a figurinos de concepção morbidamente machista. Mas quantas celebrações se farão necessárias ainda, ao longo dos anos, para facilitar à mulher o acesso por inteiro a direitos naturais, independentemente de sexo, inerentes à condição humana? Poder-se-á argumentar que são, na verdade, direitos não desfrutados na integralidade pela grande maioria dos seres humanos. Perfeito. Mas não há também como negar que a força invasora masculina chegou primeiro e se apoderou dos melhores pedaços nos espaços liberados. Temos mais coisas a dizer sobre o tema.

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