Uma prioridade humana
Cesar
Vanucci
“As mulheres são seres humanos exatamente como os homens – iguais na
capacidade de julgar e de cometer erros, se lhes derdes a mesma experiência do
mundo e os mesmos contatos com este."
(Lin Yutang – 1895-1976)
Numa terna cena de
infância, extraída do baú das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira
líder feminista que fiquei conhecendo. Era uma moça de seus 30 anos, dona de
semblante extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava
obstinação pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela
reforçava as palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já
adulto, alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de
prosa. Até hoje carrego a dúvida que um bom papo poderia certamente ter
desfeito. Teve ela, a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor
dos gestos e ações que assumiu?
Todas as tardes, eu a
avistava descendo a ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a
garotada tocava suas peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um
que outro palavrão, punido às vezes com chinelada. A sensação era de que
Verlaine encontrara naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os
versos: “Quando ela anda, eu diria que ela dança”. Pontualidade parecia atributo
todo seu. Havia quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que
as janelas das redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga mal
contida. Murmurações e olhares recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória
por detrás das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do
falso puritanismo entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco
mistério que aguçava demais da conta a cabeça da gente.
Por que as coisas
corriam daquela maneira?
O que a nossa heroína
andava aprontando a fim de provocar tanto transtorno?
Preparem-se os eventuais
leitores destas mal datilografadas para um baita impacto. Nossa intrigante
personagem, apenas e simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela
aprazível cidade do interior, na cara e na valentia, fumar em público. Ousou
mais – “imaginem só o descaramento!” -: foi também a primeira mulher a andar de
calça comprida pelas ruas, num desafio aberto aos padrões predominantes em
matéria de "veste recatada".
Tais lembranças, de
simbólico surrealismo, arrancando dos mais jovens, com toda certeza,
estardalhantes risadas, chegam a propósito do transcurso, dias atrás, do "Dia
Internacional da Mulher".
Ponho-me a imaginar que comemorações desse gênero,
cada vez mais consistentes em afirmações de cidadania, sejam capazes de abrir
efetivas condições para a quebra de novos elos na gigantesca engrenagem que
aprisiona a mulher, em extensas áreas geográficas, sociais, profissionais e
culturais, a figurinos de concepção morbidamente machista. Mas quantas
celebrações se farão necessárias ainda, ao longo dos anos, para facilitar à
mulher o acesso por inteiro a direitos naturais, independentemente de sexo,
inerentes à condição humana? Poder-se-á argumentar que são, na verdade, direitos
não desfrutados na integralidade pela grande maioria dos seres humanos.
Perfeito. Mas não há também como negar que a força invasora masculina chegou
primeiro e se apoderou dos melhores pedaços nos espaços liberados. Temos mais
coisas a dizer sobre o tema.
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