sexta-feira, 24 de abril de 2020


Invasão do futuro pela fraternidade

Cesar Vanucci

“A salvação do homem não vem do leste, nem do oeste.Vem do Alto”
(Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde)

A crise de dimensão planetária desencadeada por um reles germe patogênico, de origem desconhecida, contra o qual quase nada pode o formidável aparado tecnológico disponível, desnuda implacavelmente a impotência do ser humano para enfrentar males crônicos que alvejam em cheio a dignidade da vida.

Chegamos a uma encruzilhada crucial da história. Os clamores sociais e a evolução civilizatória cobram alterações de rumos. É preciso quebrar urgentemente engessados paradigmas. Não importa que seja muito mais difícil quebrar paradigma do que quebrar átomo, conforme asseverava Albert Einstein. Os usos e comportamentos paradigmáticos que aí estão são frutos de egoísmo bolorento e desagregador. Valendo-se de inimagináveis artifícios, às vezes vistosos sob fútil enfoque mundano, incompreensivelmente tolerados, o egoísmo justapõe-se às postulações da justiça social. Despreza-as por inteiro. Faz, por assim dizer, ouvidos de mercador ao grito “dos pobres e de nosso planeta enfermo”. Foi o que pontuou o Papa Francisco, em magistral fala para o mundo, no dia 27 de março passado, na majestosa praça deserta fronteiriça ao Vaticano. “Avançamos destemidos, pensando que continuaremos sempre saudáveis em mundo enfermo”, anotou ainda Bergoglio. O Papa lembrou que “este não é tempo para egoísmo”. O desafio é de todos nós. Reclama união, conjugação poderosa de vontades, de boas intenções. Todos temos que participar, sem as convencionais distinções que maculam os caminhos na convivência comunitária. Sem separações. Exceto, naturalmente - cabível este singelo acréscimo -, naquelas circunstâncias apontadas reiteradamente pelas autoridades realmente conscientes de seu papel, relativas ao distanciamento entre as pessoas recomendado nesses dias perturbadores.

Muitos os paradigmas a serem quebrados. Os impasses e as pedras do caminho a remover parecem, não poucas vezes, intransponíveis. O que se tem pela frente é uma miríade de situações desnorteantes, à espera de soluções sintonizadas com o interesse social. Com os justos anseios brotados das crenças humanísticas e espirituais propostas na mensagem de serena e eterna beleza que provém do fundo e do Alto dos tempos.

Mulheres e homens de boa vontade, compenetrados da necessidade urgente de uma reformulação das estruturas sociais vigentes, se perguntam e encaminham, igualmente, a pergunta que se fazem, danada de instigante, às lideranças mundiais que enfeixam nas mãos poderes decisórios. Em qual mandamento, capítulo, artigo, parágrafo, alínea, item, subitem do grandioso “Projeto da Criação” se estipulou que o mundo reservado aos seres humanos, em sua peregrinação terrena, tem que ser como é? Cruelmente desigual na distribuição da riqueza produzida pelo labor coletivo. Terrivelmente belicoso, indiferente aos dramas dos excluídos sociais, ou seja, dos miseráveis de todos os naipes, dos refugiados, das minorias estigmatizadas etcetera e tal. Está-se falando de bilhões de criaturas, parte numericamente majoritária de todos os que fomos escolhidos, por superiores desígnios, para povoar o planeta.

A parada a enfrentar, como se diz no linguajar das ruas, não é nada mole. Os inimigos são poderosos, estão bem entrincheirados e municiados. A ambição e a prepotência ditam procedimentos voltados para conquistas, a qualquer preço, de mandos hegemônicos. A geopolítica insensível, despida de senso ético, é impulsionada por conveniências espúrias, tramas de bastidores em total desacordo com o bom senso e o bem comum. Precisam, agora, desocupar lugares, na cena dinâmica da vida, para que posicionamentos, decisões e ações globais renovadores, políticas transformadoras possam curar as feridas abertasda humanidade.  Antes que seja tarde demais.

O anseio que se projeta das mentes e corações fervorosos é de que o mundo se torne mais fraterno, a solidariedade passe a ser enxergada como sinônimo de desenvolvimento. Um mundo balizado – claro está – por normas inflexivelmente democráticas, as únicas, conforme documentam experiências políticas ao longo da história, garantidoras dos direitos fundamentais. Esse não será, obviamente, um mundo permeável à politiquice e demagogia, às proposições extremadas das lateralidades ideológicas.  A salvação do homem, parafraseando o magnífico Alceu Amoroso Lima, não vem do leste, nem do oeste. Não vem do norte, nem do sul. Não vem da direita, nem da esquerda. Vem do Alto. A reconexão do homem com sua humanidade vai exigir de políticos, pensadores, cientistas, lideranças de todos os setores o melhor de sua capacidade inventiva, de seus dons, de sua condição empreendedora, de seu talento e engenho, aplicados em empreitadas reestruturantes, a serem colocadas em prática desde logo. O nobre objetivo será a criação de um tipo novo de globalização. Globalização pragmática capaz de desmontar estruturas carcomidas e de permitir, alvissareiramente, a invasão do futuro pela fraternidade.

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