A velha senhora
Cesar Vanucci
“Pois vêem-se
chamas nos olhos dos moços, mas no olho do ancião vê-se a luz.”
(Victor Hugo)
A velha senhora,
cercada do reverente respeito das redondezas, é uma arguta observadora dos
lances que rolam naquilo que costuma chamar de “meu pedaço de chão preferido”.
Ou seja, a praça fronteiriça da casa em que mora. Frequenta o lugar com
rigorosa habitualidade, dia sim, outro também. Funcionária pública aposentada, próxima
dos 90 anos, faz dalí recanto para lazer físico e mental. Comportando-se como
meio dona, vela, com carinho, mas rigor de sentinela militar, pelos
equipamentos da área. Mantém os órgãos competentes devidamente informados das
coisas que não funcionem nos conformes. É capaz de identificar pelos nomes boa
parte dos personagens que circulam pela praça. Conhece os hábitos de cada qual.
Sabe o momento certo em que os pombos aterrizam à cata de alimentos e a hora em
que alçam vôo, na busca de refúgio sob o manto da noite.
Familiarizada com
figuras e rotinas da praça, a velha senhora sentiu-se muito intrigada, indoutrodia,
com a postura sob certo aspecto inusual de um par de jovens. O que prendeu-lhe
a atenção não foi o traje sumário da moça. Nem as imagens de dragão cuspindo
fogo tatuadas s nos braços do rapaz. Nem, tampouco, o objeto metálico
perfurante preso nos lábios da
garota, ou a argola dourada imensa pendurada na orelha esquerda do parceiro.
Falar verdade, nem a pegação, na base de incandescentes afagos, escandalizou a
veneranda dama. Como realística e compreensivamente acentua, agarração em
público deixa, “nestes nossos tempos modernosos”, de ser enxergada como ofensa
aos costumes.
Aliás, mode reforçar a
tese, a velha senhora se socorre de episódio recente, envolvendo um “morador
genioso” da vizinhança. O cara é manjado pela truculência verbal com que alude,
em reuniões da associação do bairro, ao “comportamento indecente” de casais que
recorrem à cumplicidade da noite para trocas efervescentes nos bancos e
gramados da praça. De repente, todavia, o destino caprichoso colocou o dito
cujo no foco de uma situação que bem se pode classificar de kafkiana.
Acompanhado de uma meia dúzia de três ou quatro elementos, tanto quanto ele
movidos por raivosa indignação diante das supostas cenas obcenas vividas no
escondidinho noturno do logradouro, resolveu desencadear operação, na base da
surpresa, pra pilhar no flagra os incorrigíveis protagonistas dos presumidos
atos pecaminosos. Conferindo tom mais
amedrontador à sortida moralizadora, levou até, puxado pela coleira, um cão
pastor de aparência feroz. Os resultados extravasaram de longe as expectativas
do grupo repressor. O inesperado da silva montou, com impacto de bomba de
fragmentação, uma peça daquelas para o líder do grupo e leais comandados. A
prendada filha única do “morador genioso” integrava uma das duplas flagradas em
“atitudes inconvenientes”. Fazia-se acompanhar, por sinal, da namoradinha. O
desarvorado pai ficou sem fala. Permanece, ainda hoje, mudo e quedo que nem
penedo.
Mas, retornemos à dupla
da praça sob mira da velha senhora. Uma dupla que não estava nem aí para o
resto, em seu dengoso afagamento. Como já anotado, algo diferente no
procedimento dos jovens intrigou a velha senhora. Durante a esfrega de beijos e
abraços intermináveis, eles procuravam, sentados ou semi-deitados, se acomodar
em posições sincronizadas com as câmeras dos respectivos celulares. Ardendo de
curiosidade face a tão inusitada postura, a velha senhora não resistiu.
Aproximou-se para indagar a razão de tudo aquilo. A resposta chegou
surpreendente. As fotos estavam sendo batidas para lançamento na Internet, com
o intuito de garantir ampla divulgação às efusões carinhosas.
A velha senhora
declarou-se atônita com a revelação, preferindo calar-se naquele momento.
Coincidentemente, horas depois, tomou ciência pelo jornal de uma ocorrência cabulosa,
até parecida, lá nas bandas de Pernambuco. Magoado por haver sido
clamorosamente passado pra traz pela companheira, um “cabra da peste” de nome
Formozinho resolveu escancarar, nas redes sociais, em sinal de represália,
cenas da intimidade conjugal do casal, fotografadas com celular. Apoderada de
pressentimentos estranhos, temores indefinidos e de repentino instinto
protetor, a velha senhora montou vigília na praça à espera do retorno da dupla
de jovens. Quando isso se deu, chamou-os às falas num canto. Despencou pra cima
deles uma bronca em regra. Exigiu que deletassem dos celulares, na sua frente,
as imagens dos exuberantes e explícitos achegos. Justificou, assim, a impulsiva
determinação: - Mal conheço vocês dois, mas não vou consentir que banquem os
calhordas, com essa bestagem de fotografar coisas íntimas. Escutem aqui, seus
panacas: vocês andam querendo virar clones do zé roela lá de Pernambuco?
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