Zote e o Marechal
Cesar Vanucci
“Zote é fino observador e
psicólogo do sertão.”
(João Gilberto Rodrigues da Cunha)
Estou
vindo de uma releitura prazerosa. Crônicas do cotidiano boladas em tom alegre.
“O Triângulo de bermudas”, de João Gilberto Rodrigues da Cunha, médico,
empresário, ex-presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, é um
livro que reúne acontecencias de refinado sabor. Numa narrativa vivaz e
cabritante, que se espicha por 150 páginas, são trazidos ao deleite dos
leitores pitorescos causos de personagens que povoam aquelas bandas do mapa das
Gerais onde um “narigão esquisito se intromete entre Goiás e São Paulo,
cheirando os fundos de Mato Grosso”, conhecidas por Triângulo Mineiro. O autor,
dono de talento e verve, sabe jogar bem com a imprevisibilidade que é a própria
essência do humor. Já teve romance selecionado para a finalíssima do “Jabuti”
de literatura.
O
cidadão chamado Zote que faz dupla com um marechal no título destas
maldatilografadas, é mostrado no livro de corpo inteiro, num sem número de
proezas folclóricas. O autor deixa escapar afetuosa simpatia pelo dito cujo.
Explica que “nem nas piores aperturas o Zote perdeu sua audácia comercial nem
seu senso de humor”. Conta que em tempo de crise “ele construiu na rodovia o
seu Motel Zote, durante anos ponto de parada para refeição ou sono daqueles que
iam de São Paulo para Brasília”, acrescentando que “o motel do Zote era motel
mesmo e não ponto de sacanagem, como os seus futuros sucessores.” Dito o que,
recorda passagem em que seu irmão José Humberto, médico famoso, deputado
federal, num domingo setembrino, participou no local do apreciado rodízio de
churrasco, disputado costumeiramente por considerável número de clientes
“Bebeu, comeu, festivo, e no final recebeu na mesa a visita alegre de Zote,
orgulhoso de sua visita e presença.”
Conversa
vai, conversa vem, o irmão do João Gilberto que, segundo ele, “sempre foi de
certas prosopopeias em elogios”, resolveu gastar “sem economizar no Zote”,
entoando louvação à beleza do lugar, à excelência dos comes e bebes, por aí.
“Zote ficou feito mosquito em tampo de xarope”. Na continuidade do papo ameno,
o Zé Humberto, “com seu jeito confidente e sério”, perguntou: “Zote, e o
ambiente aqui é sempre sadio?” João Gilberto ainda falando: “Zote, conhecia o
compadre, mas por via das dúvidas achou que devia devolver os agrados: - Sadio
é, doutor. Mas, se o senhor quiser, nós adoecemos ele em meia hora!” Não deu
outra. “Zé Humberto, bom médico, horror à doença e similaridades zotianas, não
esperou clarear o tipo de epidemia programada, bateu em retirada.” Um amigo que
o acompanhava, “Elias, ainda espantado, rindo escondido da audácia do Zote,
setenciou o acontecido com a exclamação do povinho do Irara: - Vote!”
O
causo acima coloca o leitor em condições de ficar sabendo quem é o Zote. Já o
marechal dispensa apresentações. Cidadão ilibado e discreto, intelectual,
comedido nos gestos, Humberto Alencar Castelo Branco foi o primeiro presidente
do ciclo de militares catapultados às culminâncias do poder político com o
golpe de 64.
No
dia 3 de maio de 1964, os caminhos do Zote e do marechal se cruzaram. Este
amigo de vocês estava lá. Viu, anotou e registra aqui o ocorrido. Castelo
Branco visitava Uberaba, pouco depois de assumir o governo. Manteve acesa
tradição implantada por Getúlio: a participação presidencial na solenidade de
abertura da feira de zebu. Desceu do avião em meio a forte aparato de
segurança, recebendo os cumprimentos protocolares. Dirigiu-se à porta de saída
do aeroporto. Nas imediações, ao contrário de outros anos, a presença de
público, contido por cordões de isolamento, era reduzida. À hora em que
transpunha a distância até o veículo que o conduziria ao parque da Exposição,
uma voz esganiçada, em meio aos populares, passou a chamá-lo: - Castelo,
Castelo! O marechal e o pessoal à volta, trazendo nos semblantes claros sinais
de tensão, voltaram-se pra o ponto de onde provinha a inesperada chamada. Era o
Zote: “- Castelo, vê se dá pra manerar. A barra tá pesando.” Posso garantir,
como testemunha ocular, que na cara habitualmente sisuda do marechal ganhou
contorno um sorriso.
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