Zote e a penhora previdenciária
Cesar Vanucci
“O amigo Zote tornou-se
figura lendária nas finanças da cidade.”
(João Gilberto Rodrigues da Cunha, em “O
Triângulo de bermudas”)
O Zote, com sua matreirice roceira, seu
filosofar maroto em sintonia com a fala das ruas, esmerilhado nas duras
refregas da vida, foi personagem que fez lenda no cenário de Uberaba. São
muitos os causos engraçados, recolhidos nas rodas de prosa, que o apontam, com
seu jeitão acaipirado, como protagonista. No livro “Triângulo de bermudas”, do
João Gilberto Rodrigues da Cunha - meu companheiro de Academia de Letras do
Triângulo Mineiro -, que faço questão de recomendar, como leitura de qualidade,
rica em colorido humano, aos meus confessos 25 leitores, alguns desses causos
são relatados com graça e senso de humor.
O homem que, conforme já contei aqui, pediu ao
marechal-presidente no aeroporto, para manerar mode que a barra
tava pesando coisa que preste, era considerado, no consenso comunitário, um phd
em astúcia. Como vem revelado noutro saboroso episódio que extraio do
“Triângulo de bermudas”. Episódio esse – constato aliviado – que cai na medida
certeira para preencher o número de toques digitados necessários ao fechamento
deste meu arrazoado de hoje.
Antes de passar à descrição de artimanha bolada
pelo Zote para enfrentar uma penhora previdenciária, João Gilberto reconhece-o
como figura lendária nas finanças. “Vindo de uma bicicletaria, onde ganhou seus
primeiros trocados, ascendeu por méritos próprios e enorme trabalho” a uma
invejável posição de saúde e tranquilidade financeiras. Não foi nada mole. “Das
bicicletas que consertava e alugava, rodou por postos de gasolina até ter a sua
empresa de ônibus interestadual, uma usina de açúcar e suas fazendas de cana e
boi.”
Os detalhes da tal penhora são narrados na
sequência.
“O caso da penhora previdenciária na usina de
açúcar do Zote serve para ilustrar a sua astúcia nos seus apertos. Foi pouco
depois de vender sua empresa de ônibus e comprar a açucareira. Apertado pelo
rabo de muitas dívidas, Zote ia pagando as urgentes e fatais. Como explicou
depois, centralizou no Cartório de Protestos os seus pagamentos – para evitar
dispersão bancária, afirmou. Com isso, o Inps da usina ficou esquecido, e veio
a execução e pedido de penhora, justo na hora em que ia moer a sua primeira
safra e última esperança. Zote ponderou como receber a intervenção e penhora de
jeito a continuar vivo e combatente. Nos fundos da sua usina, encontrou um
velho e obsoleto motor alemão, tamanho duma locomotiva da Mogiana, ainda cheio
de canos de bronze e latão, selo e armas da República. Iluminou a cara. Mandou
puxarem o mondrongo pra casa das máquinas, deu-lhe uma guaribada feroz, lustro
e óleo dos mais bonitos. De mentira, ligou-lhe fios e canos, relógios e
manômetros os mais brilhantes e modernos. Por cima meteu-lhe uma lona, e na
porta, um grande cadeado.
O fiscalzinho chegou no dia seguinte, sentença
e sorriso a bordo, aquela cara de importância de quem vai puxar a alça da
guilhotina, novo no serviço e virgem de Zote. A mostra da usina foi geral. Com
cuidados e mesuras, Zote ia mostrando as dornas, o secador, moendas, tudo serve
pra penhora, dizia. E toda hora passando em frente ao barracão, que jamais
abria. Nos finais da visita, o neofiscal sorriu: Tudo bem, seo Zote, estou
avisado das suas tretas e sabedorias. Agora, o senhor faz o favor de abrir aqui
este barracão. Quero ver o que tem dentro.
Zote fez cara de desespero. Tem nada moço. Aqui
fora tem tudo que o senhor precisa pra garantir minha dívida!
- Abra seo Zote!
Trêmulo, Zote errou três botes da chave no
cadeado. Afinal abriu.
- A lona, seo Zote!
A lona saiu, e o motorzão reluziu quase tanto
quanto a cara do fiscal.
Zote ainda arriscou:
- Doutor, esse é o pai e a mãe dos meus
filhos...
- Penhorado! Penhorado!
Dias depois, verificado o desatino, o mocinho
fiscal voltou, pedindo ajuda e mudança.
Zote faz sentença final:
- Doutor, de negócio ruim eu arrependo fácil.
De negócio bom, nunca. O motor é seu.”
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