DIA DE SÃO FRANCISCO DE
ASSIS
Marilene Guzella Martins Lemos
Oração
de Francisco de Assis (*)
Semântica à luz da Bíblia Sagrada
Senhor,
fazei-me instrumento da vossa paz.
Onde
houver ódio, que eu leve o amor.
Onde
houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde
houver discórdia, que eu leve a união.
Onde
houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde
houver erro, que eu leve a verdade.
Onde
houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde
houver tristeza, que eu leve alegria.
Onde
houver trevas, que eu leve a luz.
Ó
mestre, fazei que eu procure mais:
consolar
que ser consolado;
compreender
que ser compreendido;
amar
que ser amado.
Pois é
dando que se recebe.
É
perdoando que se é perdoado.
E é
morrendo que se vive para a vida eterna.
Macroestrutura
Há
duas ou três formas(ô) poemáticas na internet para a composição transcrita.
Preferi essa às outras, por facilitar este estudo, não obstante as duas
primeiras estrofes poderem ser fundidas numa só por conter o mesmo assunto.
A súplica está distribuída em duas
invocações: no verso 1 da primeira estrofe – “Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz.” – Francisco se
apresenta para o apostolado que se propõe na obra de Deus, assim como fez
Isaías, o maior profeta do Antigo Testamento que, ao ouvir “a voz do Senhor, que dizia: A quem
enviarei...?”, ele se apresenta:
“...eis-me aqui, envia-me a mim.” (Isaías
6:8); a segunda invocação do poverello
di Assisi constitui o verso 1 da
última estrofe – “Ó mestre, fazei que eu
procure (ser) mais...”
No
primeiro apelo, é como se dissesse: Eis-me aqui, Senhor, usa-me. Francisco, diferentemente
de Isaías, não é provocado, mas, de modo espontâneo, apresenta-se para servir à
seara divina. No segundo, suplica o equipamento espiritual, o caráter de servo
de Deus, para desempenhar-se a contento – a oferta de si, o que pode
desprender-se em benefício do Outro.
Ora, não se dá o que se não tem, mas, uma vez
tendo (ou na possibilidade de tê-lo), a maior parte seja para o semelhante, e
não para si mesmo. “Ó mestre, fazei que
eu procure mais...” consolar, compreender e AMAR – são os núcleos desse
segundo apelo.
O
lugar-onde (ainda que virtual) se faz refrão nas duas primeiras estrofes e
núcleo-significativo espacial na concretização da obra missionária do religioso.
Sua missão, ao fim e ao cabo, é pacificar, mas, para isso, precisa destruir
o obstáculo que se apresenta na primeira parte de cada sentença: ódio, ofensa,
discórdia, dúvida.
Só
Deus possui e dispõe aos homens de boa vontade a única arma eficaz para dissipar todos os sentimentos contrários à
paz – o amor em suas variadas formas
de manifestação:
AMOR,
pois, é a palavra solar, em
plenitude semântica de todo o poema, transfeita (ou compreendida) em “perdão, união, fé, verdade, esperança,
alegria, luz”, e mais, na estrofe conclusiva: “consolar, compreender e amar”, palavras, estas, a constituírem o
foco desejável da mensagem-prece.
Todavia, não é em qualquer das acepções
conhecidas ou em todas elas. Não, porque a oração franciscana é inspirada no AMOR ÁGAPE – aquele que se doa, se
entrega, desinteressada e incondicionalmente ao Outro. Esse amor cujo paradigma
está na Bíblia Sagrada:
“Porque Deus
amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João 3:16)
Exemplo
de amor ágape, que pontifica reluzente na história dos homens, é o amor
sacrificial, representado na crucificação de Jesus Cristo por todos nós, e está,
assim na terra como nos céus, eternamente, no Filho unigênito do Pai, “o pão da
vida”, “a fonte de água viva”, “a luz do mundo” (Evangelho de João)
Todos
os significantes abstratos, no texto sob análise, traduzem o amor ágape, fruto
de identidade espiritual, imitação – possível – do amor de Jesus pela
humanidade. Por isso, diferente do amor carnal, cupidinoso, ou do amor como
sinônimo de empatia. Este último, denominado pelos gregos de philos, amor-amizade por alguém ou alguma
coisa. Daí a palavra filósofo, por
exemplo (philos [amigo] mais sophos [saber]), significar amigo da
sabedoria.
Esse
sentido-temático, objeto de toda a súplica da mensagem, ressuma, de forma
simétrica, no início e no fim do alopoema: “Onde
houver ódio, que eu leve o amor” (2º v da 1ª estrofe) e “Procure
mais // Amar que ser amado”
(último verso, em itálico, antes da conclusão).
Pode-se
inferir dos quatro versos da penúltima estrofe que Francisco se tenha dirigido
desta forma ao Senhor Deus: “Mesmo em minhas aflições, ó Pai, “Fazei que eu procure mais consolar que ser
consolado”, eu tenha só o mínimo de consolo para não sucumbir, mas seja de
tal modo dotado desse nutriente espiritual que possa aquinhoar meu semelhante
com a melhor porção.
A
sublime palavra amor perpassa os
dois testamentos da Sagrada Escritura como genetriz de toda bondade e
misericórdia de Deus para com os homens. O apóstolo Paulo, ao ministrar aos
irmãos das igrejas da Galácia, na região da Ásia Menor, mostra-lhes como a
liberdade é limitada pelo amor:
“...não useis
da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros pelo
amor”. (Gálatas 5:13), para
concluir: “Porque toda lei se cumpre em
um só preceito, a saber: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Idem, 14 e 15)
Ao
final do capítulo treze da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo afirma que o
amor é o maior dos dons. Bem antes, a partir do versículo quatro, o apóstolo
ensina:
“O amor é
paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se
ensoberbece; // não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade;
// tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. 1Coríntios 13:4, 6 e 7)
A
dimensão do querer amar fraternamente o Outro, no poema-súplica de Francisco,
encontra ressonância nesta passagem do Evangelho:
“Ouvistes que
foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás (a remissão em Levítico diz ‘repreenderás o teu
inimigo’) o teu inimigo. / Eu, porém, vos
digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para que vos
torneis filhos do vosso Pai celeste... / Porque, se amardes os que vos amam,
que recompensa tendes?...” (Mateus 5:43
a 46)
Pode-se
vislumbrar Francisco de Assis a encarnar todo esse sentimento de fraternidade
humana em sua mensagem, desejoso ardente que estava de servir ao próximo,
despojando-se em favor do Outro, convicto de que, como conclui sua oração: “...é dando que se recebe / é perdoando que se é
perdoado...”.
Duas lições, a seguir, de dependência da misericórdia,
do perdão e bondade do Pai celeste (ou de sua provisão) na vida de todo aquele
que se entrega à obra de Deus para o cumprimento de uma delegação de poder,
como a de Salomão, herdeiro do trono de Davi, seu pai (citação abaixo) ou de
uma jornada apostólica, como a do próprio frade de Assis:
“Ouve a
súplica de teu servo e do teu povo de Israel, quando orarem neste lugar, sim,
ouve tu no lugar da tua habitação; ouve e perdoa”. (1Reis 8:30).
Na
extensão do objeto do verbo “fazei”,
a prelibar o poema, Deus é clamado por provisão de seu servo:
“Onde houver
ódio, que eu leve o amor// Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”.
Ao
evocar, páginas atrás, a recorrência a Gálatas,
imagino Francisco contemporâneo de Paulo e seu coadjutor na ministração da
Palavra aos discípulos, a ensinar-lhes sobre As obras da carne e o fruto do Espírito. Quanto às primeiras,
destacaria:
“prostituição, lascívia, iras, discórdia,
inimizade, dissensões, inveja”; as últimas: “o amor, a alegria, paz, benignidade, fidelidade, bondade, mansidão”.
E concluiria ao afirmar não haver lei
contra estas ‘coisas’ finais, ou seja, contra o fruto do Espírito. (Gálatas
5: 19 a 23)
Apostolar
é renunciar, e o cântico poético franciscano transmite a mensagem de apelo à
autotransformação do Autor em prol da humanidade. A penúltima estrofe revela
sua incompletude – donde o pedido para que aprimore sua capacidade de consolar, compreender e amar.
Um dos
versículos-frásicos do Sermão do Monte diz: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”.
(Mateus 5:7) Francisco não apenas se
mostra misericordioso, por índole vocacional, como ainda se torna exemplo
cristão dessa virtude para com seu semelhante.
Ao reportar-nos
ao Capítulo Quinto de Gálatas, enxergamos ali o bem contra o mal. Por essa
reflexão, seremos convencidos de que Francisco se entregou à luta contra esse
antagonismo espiritual, e sua oração exprime exatamente a busca de força do
Espírito de Deus para que ele possa combater o mal onde ele estiver, levando o seu sucedâneo – o bem, para o reencontro de seu irmão
com a paz e a alegria.
Corolário
“E é morrendo que se vive para a vida eterna”.
Verso-fecho do canto franciscano a desempenhar dupla função – a de corolário
dos apelos do frade, a tarefa clamada a Deus, seu apostolado e a consequência
eterna, ou a recompensa; o aspecto recolectivo de toda a mensagem – a cadeia
dos significados, da 1ª. à última estrofe, da concordância bíblica que sustém o
destrinçamento semântico, ao sentido de transcendência constante da mensagem.
O galardão, entanto, pressupõe o condicionamento à lei do plantio e da colheita: é plantando que se colhe, ”...é dando que se recebe”. A oferta de si, com a renúncia da própria vida em benefício do Outro, representa a semente geradora da vida eterna.
Belo horizonte, seis de outubro de 2020
(*) Trabalho programado para a
sessão literária da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (AMULMIG),
dia 6.10. 2020, mas sustado por cautela sanitária (covid).
(**) Evangelista-capelão, autor
de três livros cristãos: Missões locais, Missões transculturais e Homilia
Matutina.
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