sábado, 28 de novembro de 2020

 

Uma só raça, a humana


Cesar Vanucci


“É preciso mais coragem para amar do que para odiar.”

(Lázaro Ramos, ator, explicando o que o levou a produzir o documentário “Falas negras”, levado ao ar pela “Rede Globo”, no Dia Nacional da Consciência Negra.)

 

A comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra é enxergada, por alguns, com manifesto desdém, quando não com aberta hostilidade. Entre os militantes da reduzida, posto que barulhenta e aguerrida falange talebanista nativa, há quem, até mesmo, não se constranja, fazendo cara de paisagem, em declarar que não houve escravidão no Brasil. Só fica faltando mesmo dizer – se é que já não foi dito por aí, em meio ao desvario negacionista solto na praça -, que a “imigração maciça” registrada, por longo e tenebroso período, até o final do século XIX, “proporcionou” a milhões de africanos “a benfazeja chance do desfrute de condições de vida superiores às de seus pagos natais”... Minha Nossa Senhora da Aparecida!

O preconceito racial estruturado, pra quem tem olhos pra ver, ouvidos pra escutar e sensibilidade social para perceber, é fato irretorquível e impactante. Os negros e pardos são mais de 53 por cento da população brasileira. Mas não costumam ser vistos – e não por falta de desejo ou vontade -, em lugares onde a evolução civilizatória já conseguiu estabelecer padrões superiores de conforto e bem estar aos seres humanos. Sua participação em quadros diretivos, em funções executivas elevadas, na vida pública e na esfera privada, está muito, mas muito mesmo, aquém das possibilidades que podemos, legitimamente, delinear ao ter-se em mira a proporcionalidade demográfica assinalada. As estatísticas são reveladoras. Sete de cada dez brasileiros que habitam moradias inadequadas – casas desprovidas de um mínimo de conforto e higiene, sem água encanada, rede de esgoto e, até mesmo, energia elétrica -, são negros ou pardos. É o IBGE que atesta.

De dados atordoantes extraem-se, ainda, coisas assim: as mulheres negras acham-se mais expostas a riscos de atentados mortais do que as mulheres brancas. A diferença é de 64 por cento. Nos casos de ferimentos provocados por violência, bem como nos de mortes, o índice percentual correspondente aos negros é maior e sempre ascendente. Existe hoje, nas penitenciárias e cadeias, cumprindo penas, aguardando sentenças, um contingente infinitamente maior de negros. Na média nacional, 62 por cento das mulheres encarceradas são negras ou pardas. Há Estados onde esse indicador chega a 97 por cento. Sustentando que a desigualdade, nesse contexto racial, começa no útero, a jornalista Cláudia Colucci anota, na “Folha de São Paulo”, que as mulheres negras fazem muito menos pré-natais do que as brancas e que o registro de mortes é bem mais elevado entre as pacientes de cor. Seguindo essa linha de raciocínio, apura-se ainda que a probabilidade de uma criança negra vir a falecer no primeiro ano de vida é de 22 por cento maior.

As constatações desse estado de coisas chocantes jorram impetuosamente. Todas as estatísticas disponíveis convergem implacavelmente numa única direção. Em todos os itens que dizem respeito a acessos de promoção social oferecidos, em amplitude universal, pela tecnologia, pelas políticas públicas de inclusão nas áreas da saúde, educação, lazer, na habitação, alimentação e por aí vai, as pessoas de epiderme escura estão sempre em desvantagem. Se é verdade que o drama da desigualdade social atinge multidões consideráveis, sem distinção de cor, não deixa de ser verdade, também, que seus efeitos perversos alvejam mais gritantemente, em termos comparativos, integrantes da comunidade negra.

 A discriminação e intolerância são identificadas continuamente em flagrantes da vida cotidiana.  Ocorrem, com frequência perturbadora - todos nós estamos suficientemente informados -, em clubes, escolas, locais de trabalho, nas ruas. Em supermercados...

As reações de inconformismo e indignação contra essa aberração comportamental ilegal, desumana, vêm se expandindo de forma elogiável e animadora, envolvendo segmentos cada vez mais representativos da sociedade. Os defensores dessa causa entendem perfeitamente que só existe uma raça, a humana. Cor de pele é detalhe anatômico. A inclusão do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário das comemorações populares deriva de impulsos generosos e anseios ardentes de gente que, ancorada em valores jurídicos, cívicos, morais, democráticos, sonha com uma pátria amada Brasil liberta dessa praga daninha, o preconceito racial. Mesmo que e apesar de, à sua volta, aqui e ali, uma que outra voz desafinada se esforce por ser ouvida com o intuito de transmitir, a propósito do candente assunto, palavras ambíguas, conformistas, confusas, enfim, negacionistas. Tudo imensamente distanciado do verdadeiro sentimento nacional.

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