O
antirracismo entra em campo
Cesar Vanucci
“Um santo impulso!”
(Nelson
Rodrigues, se ainda entre nós,
assim
classificaria, por certo, a atitude dos atletas)
Conforme
manjado jargão da crônica futebolística, o antirracismo adentrou a cancha. Em
grande estilo. Soberbo espetáculo de afirmação civillizatória aconteceu no
majestoso estádio parisiense “Parque dos
Príncipes”, com arquibancadas vazias como pede a turbulência pandêmica,
quando da disputa entre o PSJ, francês, e o Instanbul Basaksehir, equipe turca,
pela última rodada da fase de grupos da Liga Europeia dos Campeões. No
comecinho do jogo, 13 minutos do primeiro tempo, um árbitro de linha, romeno, alvejou
com expressão desairosa, de notório conteúdo preconceituoso, um atleta africano
que, por sinal, não participava da peleja. No quiproquó que se seguiu o cartão vermelho
de expulsão foi sacado do bolso do árbitro principal, mas o prélio foi interrompido
por conta de um episódio jamais registrado nos anais do esporte das multidões.
Os jogadores dos dois times tomaram, conjuntamente, unanimemente, a incrível decisão
de abandonarem, disciplinadamente, o gramado, em sinal de protesto contra o ato
de discriminação praticado. A atitude assumida, inédita num palco esportivo,
colocou obviamente em xeque o regulamento do torneio, deixando a cartolagem
aturdida e o público (que acompanhava a competição pela tevê) maravilhado. Menos
de 24 horas transcorridas da inusitada ocorrência, com a composição da
arbitragem alterada, normas e regimentos burocráticos chutados pra escanteio, a
partida interrompida teve continuidade. A punição aplicada na véspera – cartão
vermelho – passou a não valer. O placar avantajado, 5 a 1 em favor do time
francês, foi considerado detalhe de somenos na flamejante história, diante da memorável
goleada, de impactante simbolismo, aplicada contra o racismo numa das canchas
da vida em que ele costuma mostrar a cara.
A
situação vivida no “Parque dos Príncipes” concita-nos a percorrer as ladeiras
da memória, recolhendo na caminhada exemplos frisantes, de duradoura
repercussão, afrontosos à dignidade humana, cometidos em ambientes esportivos pomposos.
Talvez
o mais contundente desses registros haja sido o da Olimpíada de Berlim,
realizada pouco antes da segunda guerra mundial. O protagonismo infame ficou a
cargo do sinistro Adolf Hitler, ícone das falanges racistas em sua configuração
mais horrenda. Num dado momento, espumando ódio, ele resolveu deixar, abrupta e
acintosamente, a tribuna do estádio para não ter que entregar troféu a um
magnífico atleta estadunidense – “negro como a noite, negro como as profundezas
d’África”, segundo os versos célebres do poeta Langston Hughes -, que acabara
de conquistar, galhardamente, a mais cobiçada láurea dos jogos. Mas, na
ocasião, nada obstante a ressonância midiática alcançada pelo boçal gesto, a
ninguém, a nenhuma delegação, acudiu a ideia de marcar indignação,
inconformismo face ao abjeto posicionamento racista cometido pelo ditador
nazista, com ato de desagravo coletivo instantâneo, tal como o de agora em
Paris.
Naquele
e noutros momentos em que a brutalidade racista se fez sentir num cenário
festivo repleto de esfuziantes emoções, como costumam ser os cenários compostos
para grandes concentrações esportivas, nada se viu, como reação dos atletas e
público, que ligeiramente pudesse se igualar ao que os jogadores turcos e
franceses, promoveram nessa recente noitada futebolística. Uma noitada inesquecível,
na qual futebol, com toda sua eletrizante carga emotiva, cedeu lugar, contentando-se
a segundo plano na ribalta, a uma atração que não estava no programa, a uma
manifestação histórica que engrandece a consciência humana.
Os
22 craques foram movidos por impulso fabuloso. Se vivo, Nelson Rodrigues não
hesitaria, com toda certeza, de classificá-lo de “santo impulso”.
O
antirracismo entrou em campo. O correto é garantir sempre sua escalação.
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