Vidas
pretas importam
Cesar
Vanucci
“A
questão racial precisa ser tratada em todos os domínios, da Justiça à
Tecnologia”.
(Jorge Terra, negro, Procurador da Justiça,
Mestre e Doutor)
Ninguém
mais bem capacitado a descrever com exatidão a ignomínia do racismo do que um
cidadão que na trajetória cotidiana sofra na própria pele as constantes ferroadas
da horda de preconceituosos, de todos os naipes, que circulam desembaraçadamente
por aí. Oportuno, por conseguinte, tomar conhecimento de relatos que se disponham
a fazer, a propósito da flamejante questão, personagens que, a despeito dos empecilhos,
armadilhas, desafios de toda ordem, conseguem galgar posições de realce profissional
que lhes facultem a chance de denunciar o drama existencial dolorosamente
imposto às vítimas da intolerância racial.
O
Procurador de Justiça Jorge Terra, gaúcho, é um desses personagens que conviveram,
desde muito cedo, com o problema da estigmatização por causa da cor da pele. Ou
seja, à luz do bom senso, do humanismo, da justiça social, por causa de coisa
nenhuma. Como já dito e repetido, a raça humana é única. A cor da pele não
passa de mero detalhe anatômico. Assim como a cor dos olhos, a cor dos cabelos,
a menor ou maior estatura, e inumeráveis diferenciais que fazem de cada vivente
deste planeta uma individualidade no meio das multidões.
Em
depoimento à “Carta-Capital”, ele conta que, na infância, na escola pública que
frequentou, fazia parte de um grupo de quatro negros na sala de aula. Os demais
alunos se recusavam a brincar com os quatro no chamado recreio. Isso perdurou
até o dia em que se viu forçado a brigar com o líder da turma que os hostilizava.
Sustentando que o preconceito independe de classe social, ele anota que o
enfrentamento do problema é permanente. Sentiu isso ao longo dos tempos e,
hoje, com 54 anos de idade, graduado em Direito, com Mestrado e Doutorado,
desenvolve ações contínuas no combate à xenofobia, ao machismo e outras
modalidades de preconceito, além, obviamente, do racismo. Explica que “não
haverá sociedade justa, democrática e solidária com parte da população sofrendo
discriminação e injustiças”. Acentua, em entrevista ao jornalista René Ruschel,
que o problema arrasta negros e pardos à pobreza. O racismo – diz ainda - se
manifesta de forma cruel nas áreas da educação e do mercado de trabalho.
Referindo-se
à circunstância de o racismo, a segregação e o preconceito permanecerem tão
arraigados nas engrenagens da convivência humana, registra que “o racismo no
passado era segregacionista, mas, hoje, afigura-se mais na forma
assimilacionista.” Aduz: “Ataca características comportamentais e culturais de
determinados grupos que, igualmente, geram exclusão. O preconceito, os estereótipos
raciais e o racismo continuam revigorados pelo fato de não serem sistemática e
efetivamente combatidos no âmbito público e privado.”
A
respeito da observação de que as crianças em idade escolar recebem informações
de maneira muito superficial acerca dos dramas do racismo e da escravidão, o Procurador
salienta: “O problema começa, mas não se resume à rede básica. Falhamos no
ensino jurídico e não parece haver plena compreensão ao tratarmos de Direito
Constitucional, de Direito Administrativo, de Direito Penal e de Direito
Internacional. Negamos às crianças, aos adolescentes e aos jovens uma educação
plena, baseada na verdade, capaz de gerar as transformações sociais, políticas
e econômicas indispensáveis. O racismo é reforçado também nos ambientes
familiares. Em decorrência da nossa forma de socialização, no primeiro espaço
público que vivenciamos, a escola, preferencialmente na educação infantil, de
fato é imprescindível haver trabalho antirracista efetivo, planejado e
sistematizado.”
Jorge
Terra é indagado, ainda, na entrevista, do motivo de manter-se firme e resoluto
na luta antirracista, tendo em vista o caráter costumeiramente inglório desse
tipo de ativismo. Responde da seguinte maneira: “Tenho foco constante na
eficiência e na eficácia dos direitos humanos. Trabalho não apenas no combate
ao racismo, mas também no enfrentamento de questões relacionadas ao machismo e
à xenofobia, bem como atinentes aos preconceitos contra pessoas com deficiência
ou integrantes da comunidade LGBT-TQIA+. Confesso ter dificuldade de ver a vida
sem enfrentamento de numerosas questões que geram enormes barreiras para os
cidadãos”. Arremata: “Não haverá sociedade justa, democrática e solidária com
parte da população sofrendo discriminação e injustiças. Penso ser possível a
superação desde que haja planejamento, com atenção à eficiência e à eficácia.”
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