sexta-feira, 30 de julho de 2021

 

O poeta e o programa infantil

 

Cesar Vanucci

 

“Saudade é ser, depois de ter.”

(Guimarães Rosa)

 

O “Programa Infantil” da PRE-5 era produzido, dirigido e apresentado pela saudosa Altiva Glória Fonseca, uma mulher charmosa e inteligente, de presença destacada nas atividades culturais e assistenciais em Uberaba. Levado ao ar nas manhãs de domingo, com participação animada de público fiel, que lotava o assim chamado “salão grená” da emissora, atraia (anos 40) uma legião considerável de ouvintes. As atrações artísticas, garotos e garotas com inclinação para canto, declamação, esquetes, galvanizavam vibrantes torcidas, os orgulhosos pais da gurizada em plano de realce. Augusto Cesar Vanucci, Pedrinho Ricciopo, Arahilda Gomes, Neuza Papini, Nancy Pagano, Irmalda Dorça, Alaor José Gomes, Maria Abadia de Oliveira,

Irmãos Miranda, Chiquito Pereira Alves, Vicente de Paula Oliveira, Joel Andrade Loes, Walia Vieira, Zilma Buggiato Faria, este desajeitado locutor que vos fala eram, entre outros, integrantes do “elenco permanente” do programa. Os ensaios para as apresentações ocorriam nas tardes de sábado. O Regional da estação de rádio, dirigido pelo maestro João Tomé, artista de mão cheia, capaz de arrancar sons de tudo quanto é instrumento apesar da cegueira de nascença, cuidava com esmero do acompanhamento dos intérpretes, fazendo, se preciso, fundo para declamações. O conjunto compunha-se de piano, violão, cavaquinho, flauta, bateria e pandeiro.

As imagens de borbulhante júbilo daqueles anos dourados da meninice acodem-me com constância à memória velha de guerra. Indoutrodia, num encontro de cunho poético, fui buscar no baú uma lembrança danada de terna do “Programa Infantil da E-5”. Ao tomar da palavra para contar histórias sobre eventos literários, citando autores, livros e versos de minha predileção, relembrei a história de um poeta norte-americano, Langston Hughes, recitando um de seus poemas. Assinalei que o poema eu o decorara para declamação em audição do programa. Recuperei na hora, repassando-a aos participantes do encontro cultural, meiga cena. A Altiva Glória Fonseca incumbiu-me de um “dever de casa” nas proximidades de um dia 13 de maio. O programa da semana seria voltado para manifestações lítero-musicais com foco na abolição da escravatura. A encomenda que recebi foi a de decorar o poema “Sou negro”, do poeta acima citado. Sob a zelosa supervisão de minha saudosa mãe Tonica, decorei pra nunca mais esquecer os versos recomendados, de suave sopro lírico e de dardejante conteúdo social. Bate-me forte, aqui e agora, a tentação de reproduzi-los para deleite, por certo, dos cultos leitores. Vai lá:

“Eu sou negro: / Negro como a noite é negra, / Negro como as profundezas d’África. Fui escravo: / Cesar me disse para manter os degraus da sua porta limpos. / Eu engraxei as botas de Washington. Fui operário: / Sob minhas mãos as pirâmides se ergueram. / Eu fiz a argamassa para a fábrica de algodão. Fui cantor: / Durante todo o caminho da África até a Geórgia / Carreguei minhas canções de dor. / Criei o ragtime. Fui vítima: / Os belgas cortaram minhas mãos no Congo. / Eles me lincham até hoje no Mississipi. Eu sou Negro: / Negro como a noite é negra / Negro como as profundezas da minha África.”

 

Do poeta, nascido em 1º de fevereiro de 1902 e falecido em 22 de maio de 1967, fiquei sabendo mais tarde tratar-se de um inovador da arte literária, cioso de sua ancestralidade negra. Ativista social, romancista, dramaturgo, acabou firmando conceito como o mais importante poeta negro de seu país. Um homem que soube transpor para a palavra os ritmos e a cadência da música de sua gente, notadamente o blues.

E quanto ao programa da E-5? Ele é capítulo de dias idos. Da aurora da vida, da infância querida, que os anos não trazem mais, de que fala Casimiro de Abreu. Converteu-se em saudade. Ou seja, passou “a ser, depois de ter”, como diz Guimarães Rosa.

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