Romanceiro de Federico Garcia Lorca,
de Mercês Maria Moreira
Jair Barbosa da CostaVice-Presidente da Amulmig (pequeno ensaio) Ofereço
este ensaio a minha filha Gisele, futura ocupante da cadeira de Mercês na
AFEMIL. Sempre notei nos romanceiros certas características comuns: o épico
como gênero prevalente, todavia, veiculado pelo lírico; formas (fôrmas)
poemáticas variadas, em geral obedientes à métrica e rima. O romanceiro de
Mercês Maria Moreira difere dos demais por eleger o decassílabo a predominar em
longas estruturas desta alentada obra sobre os alopoemas, em redondilhas dos
dois tipos, em menor número. Ainda, relativamente às fontes para a construção
deste Romanceiro de Federico Garcia Lorca, a Autora não recorre ao fabulário
popular para sequer um dos temas desenvolvidos. É que lhe bastam a fecunda vida
de seu ídolo, — considerado herói e vítima da ditadura franquista, responsável por
seu assassínio —, sua terra, seus amigos, seus algozes, sua Espanha e a
brilhante trajetória de palco e das letras cujas produções perpassam todo o
livro, em especial a Poética, que a Autora resenha, em versos, para trazer-nos
a lírica lorquiana, como a do Romancero Gitano. Além disso, estabelece uma confluência
de sua personagem-central com os maiores intelectuais do mundo hispânico a sua
volta. Três pórticos: a) o que se pretende cantar — Lorca, a Espanha, Andaluzia
e Fuente Vaqueros, aldeia do gênio, e a dor por sua perda; b) despertar da
origem cigana da Autora; c) o indelével amor platônico amalgamado ao badalar do
sino “imperecível” no coração de quem canta. Após invocar a Deus, com
humildade, pede-Lhe luz para realizar a obra cujos primeiros poemas, como um
andante, trazem Federico ao mundo e retratam seu sangue — a mãe, o pai, os
irmãos, assim também o povo, a aldeia Fuente Vaqueros. Os ingredientes para
nutrir todo o incomparável manancial épico-lírico de Mercês Maria Moreira são fartos
e não se esgotam. Eis a impressão à medida que se vai palmilhando o singular
percurso do artista multifário: dramaturgo, poeta, pintor, escritor, também
autor de um romanceiro de sua raça gitana, cujo tema e personagens sua cantora
exalta e revive.Também
no bojo de boa parte dos poemas é a figura de Garcia Lorca que se quer evocar e
enaltecer para se expor e reafirmar, até o ilimitado, o imensurável amor da
Autora — cúmplice desse onírico idílio.Em
Perdido amor, por exemplo, tem-se uma comunhão perfeita dessa personagem com a natureza,
em plenitude, e com antigas civilizações e “remotas línguas de fanados seres”,
na busca incansável, obstinada, do poeta-mito, móvel solar do romanceiro. A
explosão do eu-lírico, em ascese, exerce tal pressividade, à procura obcecada
dessa metade, assim desplatonizada, que, em um desses colóquios, fruto da
imagética, deixa escapar os apelos da matéria e (os) anseios da alma. Perdido
amor encerra-se como se fosse o epílogo do romanceiro, como se findasse a mais
sentida declaração de amor: parece recolher e escoar todas as essências do
canto lírico, do esplendor da própria poesia, adornada de metáforas e alegorias
a envolver o amado Garcia Lorca, tão platônico e tão palpável neste belo, majestoso
canto-acalanto. Mas
uma alma, assim machucada e ofendida pela morte covarde de seu maior mito,
acabaria encontrando uma fórmula poética de vingança. É o que faz Mercês Maria
Moreira com todos os algozes do
dramaturgo: condena, pós-morte, a torpeza e arrogância de Luiz Alonso. Dialoga
com o carrasco, atirando-lhe toda sorte de praga e o desprezo. Assim também
procede com o sádico Governador José Valléz
Gusmán e, finalmente, com o generalíssimo Franco. Em duas extensas composições,
critica a mão pesada e agressiva do ditador, a sede de poder, a prepotência, o
extermínio de inocentes, inclusive de
seu amor maior, Lorca, cuja arma – o talento – e cuja munição – o verbo
perturbavam os senhores mandatários de “su pátria”. O amor sublime e puro, o
humanismo, na mais arrojada apologia e reflexão, a historiografia, em verso, de
um dos períodos políticos mais sufocantes da Espanha, berço de numerosos
artistas e pensadores universais — tudo isso se faz presente no Romanceiro de
Federico Garcia Lorca, obra-prima da magistral poetisa Mercês Maria Moreira.
Tudo
é grandiloquente e altissonante neste monumento literário a Garcia Lorca,
núcleo-significativo, lato sensu, de toda a obra, seja ao se tratar do próprio
curso vital e artístico, seja ao se inserir na história de Fuente Vaqueros,
Granada, Espanha e seus expoentes artísticos e intelectuais, amigos de Lorca,
como Pablo Neruda, Dâmaso Alonso, Picasso e mais duas dezenas deles. Sente-se o
pulsar da Espanha por todo o livro, mas este “Renascimento da Espanha”, de
quase cento e setenta versos, é, a um tempo, hino e meditação: seu passado, sua
história, sua dor; o assassínio de Lorca, as expressões maiores de suas artes.
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