Semântica das urnas
O jornalista Nirlando Beirão, de saudosa
memória, reconhecido no período em que atuou como titular absoluto no escrete do jornalismo de
qualidade comprometido com o sentimento nacional, era dotado de inteligência
arguta e a verve faiscante. Deixou isso esplendidamente evidenciado num
saboroso texto publicado, anos atrás, na revista “CartaCapital”. Intitulado
“Dicionário Eleitoral (para ingênuos)”, o trabalho fornece dicas que ajudam a
decifrar a semântica das urnas, ou, conforme frisa, “entender o que é verdade e
o que é só interesse no calor das temporadas eleitorais”.
Abaixo,
de forma adaptada e resumida por este desajeitado escriba, alguns “verbetes” do
divertido “dicionário”. 1)Alternância
de Poder – só é essencial à democracia quando o nosso adversário está
no poder. 2) Aparelhamento do Estado
– os adversários nomeiam apaniguados. Nós, os melhores quadros técnicos. 3) Corrupção. Os outros a praticam
de forma perene. Nossos aliados cometem apenas pequenos deslizes. 4) Visão de Deus. Todos os
candidatos dizem ter fé. Os mais fervorosos são aqueles que não acreditam. 5) Delação premiada. Ela só tem
valor se vazada para atingir o concorrente. Se no meio do lamaçal, surgir o
nome de um aliado, o correto é dizer que as denúncias são açodadas e precisam
ser apuradas a fundo, doa a quem doer. Quanto ao fato de o vazamento da delação
premiada constituir também crime (...), bem esqueça.” Cenário internacional. Se uma administração aliada vai mal,
a culpa é do cenário externo. Inverte-se a lógica no caso dos adversários. Se a
gestão inimiga vai bem, as condições internacionais a favoreceram. 7) Marquetagem. Se o adversário
sobe nas pesquisas isso se deve a ação mistificadora dos marqueteiros. Sem essa
de lembrar que o nosso candidato igualmente possui um exército de especialistas
em marquetagem. 8) Ano eleitoral.
As ações do adversário não passam de medidas eleitoreiras. As nossas ações são
decisões de governante seriamente comprometido com suas funções. 9) Velha política. Só os
adversários a praticam. 10) Coligações.
Promovidas por nós, deixam estampada aguda sensibilidade política, negociação
de fino trato. Promovida pelos outros, denotam falta de escrúpulos, atroz
barganha de princípios por conveniências.
Este
desajeitado escriba não resiste à tentação, após a leitura do “Dicionário” de Nirlando
Beirão, de juntar ao texto outra sugestiva definição sobre política. O autor é Pierre
Augustin Caron de Beaumarchais considerado por biógrafos figura emblemática do
“Século das Luzes” (XVIII), foi, aliás, muito mais que um brilhante dramaturgo.
Escritor, músico, poeta, instrumentista, professor, inventor, homem de negócios
que amealhou fortuna, exerceu também, vivenciando ascensão social fulminante, a
carreira diplomática. Aqui a definição:
“...
fingir ignorar o que se sabe e saber o que se ignora; entender o que não se
compreende e não escutar o que se ouve; sobretudo, poder acima de suas forças;
ter frequentemente como grande segredo ou esconder que não se tem segredos”;
(...) “parecer profundo quando se é apenas, como se diz, oco e vazio;
desempenhar bem ou mal um papel”; (...) “procurar enobrecer a pobreza dos meios
pela importância dos objetivos: eis toda a política (...)”.
E
como arremate, vem agora mais esta intrigante observação sobre o comportamento
político, muito em voga no passado, nas hostes da militância partidária
coronelística: “aliado meu não tem defeito. Adversário, se não tem, eu
boto...”.
*Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)
Nenhum comentário:
Postar um comentário