quarta-feira, 22 de março de 2023

Mulheres riscadas da vida



*Cesar Vanucci

“Nalguns países, meninas e mulheres são riscadas da vida pública” (Antonio Guterres, Secretário Geral da ONU.)

Aciono o videocassete da memória na tentativa de recompor emblemática cena dos anos 50. Naqueles tempos, os primeiros fuscas estavam sendo postos a circular nas ruas e estradas brasileiras, atiçando bastante a curiosidade popular. Mas, a aglomeração à volta do veículo, estacionado diante do palacete na praça central da cidade, derivava de outra circunstância, também singular. Graciosa jovem, envergando traje incomum para o chamado “sexo frágil” – calça comprida, blusa solta, bota unissex -, divertindo-se à pamparra com o alvoroço provocado, assumiu o volante manobrando o carro no sentido de circundar o logradouro, arrastando de um lado para o outro a multidão. Era a primeira vez que muitos estavam vendo naquelas bandas uma mulher motorista. A imagem restou como lembrança de um momento hilário totalmente ultrapassado.

 Dá causa a dilacerante impacto saber que, mais de meio século transcorrido a mulher, em dezenas de países, nos vários continentes, é impedida de repetir o gesto banal da moça dos anos 50, por conta de dogmatismo religioso de repulsiva concepção machista. Apontada como uma blasfêmia herética em hostes fundamentalistas, dirigir carro é apenas uma entre centenas de proibições rígidas, descabidas, instituídas com o fito de subjugação da mulher a ditames morais anacrônicos, anteriores até mesmo ao período de obscurantismo medieval. Isso explica a razão pela qual, ao referir-se ao dramático problema da opressão feminina detectada em diferentes plagas do planeta, o Secretário Geral das Nações Unidas, Antonio Guterres haja enfatizado que em vários lugares as meninas e mulheres, são na verdade, praticamente riscadas da vida pública.

Nesses rincões adversos às mulheres, onde seus direitos são massacrados as pessoas do sexo feminino não podem sair desacompanhadas, não podem frequentar escolas, academias, parques públicos, são impedidas de trabalhar fora, não podem escolher pares e companheiros, só viajam na companhia de país, maridos e irmãos. São forçadas a usar véus e roupagens exóticas que as “protejam” de olhares indiscretos. São submetidas a um regime de clausura, análogo não poucas vezes ao de “escrava’”. Correm riscos de serem chicoteada publicamente pelos “guardiões da moral e costumes”. A regra sobre vestimenta aplica-se também as visitantes, sendo de molde, por conseguinte a criar transtornos a alguma incauta turista.

 O que acontece na Arábia Saudita, Irã, Paquistão, Afeganistão representa amostra do tratamento mais abjeto em um punhado de países de orientação religiosa ortodoxa dispensada às mulheres. Ainda agora nas ruas de Teerã e  outras cidades no país comandado de forma despótica pelos aiatolás registram choques entre policiais e manifestantes devido ao inconformismo de parcela da comunidade iraniana contra o excesso de arbitrariedades praticadas envolvendo as mulheres. Por causa do “uso incorreto” do véu, Mahsa Amini, 22 anos foi detida e morta pela polícia de costumes em setembro do ano passado. O caso foi estopim dos movimentos de protestos que se espalharam pelo país e provocaram repressão violenta, com prisões, feridos, mortos e intensa comoção internacional.

 A palpitante questão dos direitos femininos pode ser avaliada por múltiplos aspectos. Forçoso reconhecer que são inúmeras as conquistas a serem celebradas. De outra parte, não são poucas as situações clamorosas a serem removidas. Numerosos são também os pontos relevantes a considerar em matéria de alterações viáveis quanto a normas e regras estatuídas por instituições tradicionais. A abertura de um debate em torno da ordenação Sacerdotal feminina, por exemplo, estimularia em muito o processo do emparelhamento tão almejado dos direitos da mulher e do homem.

 

Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)


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