Cesar Vanucci *
"Natal (...) industrializaram o tema, eis o
mal."
(Carlos Drummond de Andrade)
O presépio da vó Carlota era um primor. O mais arrumado da rua, a nos
louvarmos na opinião dos vizinhos. Ocupava quase a metade da sala de visita. A
mesa de jantar, de razoável dimensão, recoberta de sacos de aniagem e papel
pardo de textura encorpada, servia de suporte. Já o guarda-louças do conjunto
precisava ser remanejado para um dos quartos, mode não atrapalhar o
deslocamento dos interessados em apreciar a arte e engenho empregados na
montagem. Vovó Carlota preparava tudo no capricho. Despejava na empreitada o
mesmo ardente fervor que punha nas práticas de religiosidade que lhe conferiam,
no conceito de tanta gente, a fama de santa criatura. Ao longo de vários
decênios, diariamente, de manhãzinha, acompanhada das filhas Nenê e Luzia,
subia a ladeira que desembocava na bela Igreja, toda revestida de pedra
tapiocanga, de São Domingos, a fim de participar das missas dos dominicanos. A
cena ganhou carinhoso registro na memória uberabense. A tal ponto que acabou
sendo transposta por Mário Palmério para as páginas do "Chapadão do
Bugre". Antes porém, de retornar à história do presépio, quero contar
algumas coisas mais a respeito de minha avó paterna. Essa mulher maravilhosa,
presepeira criativa, amealhou em vida considerável crédito, embora humilde e
pobre, pelas muitas ações, executadas no anonimato, em favor dos desvalidos.
Fez parte na caminhada pela pátria terrena, sem dúvida, do mundo invejável dos
corações fervorosos, um tipo de gente que engrandece a espécie. Quando
adolescente, deslumbrado, descobri a poesia de Manoel Bandeira, deparei-me com
texto que se encaixa admiravelmente em seu perfil. É aquele em que o poeta fala
da presença na porta do céu de uma anciã carregada de dons. São Pedro, vendo-a,
vai logo dizendo: - Você não precisa pedir licença pra entrar!
Volto, agora, ao presépio para explicar que aquela
representação simbólica do Natal, com seu mágico fascínio, respondia à
aspiração de pessoas afeiçoadas a estilo de vida singelo de comemorarem
condignamente, no âmbito familiar, a data mais significativa do calendário. Era
desmontado depois do "dia de Reis". A introdução das figuras centrais
no cenário sagrado só acontecia depois da célebre "missa do galo", na
volta de vó Carlota da igreja. As efígies dos reis magos e a decoração
correspondente à reluzente "estrela de Belém" iam sendo
paulatinamente deslocadas, a cada manhã, em sua trajetória na direção da
manjedoura, até o dia do encontro devocional histórico narrado nas crônicas do
comecinho cristão. No mais, a comemoração daqueles tempos, de hábitos consumistas
parcimoniosos, costumava abranger ainda, com todos reunidos, a tradicional ceia
ou, no dia seguinte, almoço na base de frango recheado e arroz de forno. Sem
libações alcoólicas, tá claro. E, também, na parte do ritual atribuído à
criançada, sobrava para cada qual a grata obrigação de deixar os sapatos no
presépio para que Papai Noel, quando a casa mergulhasse em sono profundo,
largasse os presentes trazidos na carruagem puxada por renas.
Tudo diferente das comemorações destes tempos de hoje,
de consumismo voraz, em que a marquetagem cria, com frenética desenvoltura,
espaços para erigir como símbolos natalinos o peru da Sadia e o chester da Perdigão.
Uma
baita saudade!
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
Um comentário:
Crônica deliciosa da gente ler!
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